sábado, dezembro 31, 2005

José Craveirinha

KARINGANA UA KARINGANA

Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
- Karingana ua Karingana –
é que faz o poeta sentir-se
gente

E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão que parece impossível
em sonho do que vai ser.

- Karingana!


[192]

sábado, dezembro 24, 2005

Sebastião Alba

NATAL NO CÁRCERE

O menino que, ao domingo, recebe na língua a hóstia que nela depõe o tio-avô, pároco da aldeia, é o garoto que, à tarde, observará, deitado na relva, a chegada dum pássaro ao seu ninho. Entre os dois trava-se ainda uma luta de morte. Mas é o segundo, quarenta anos mais tarde, quem escreve estas linhas.
Porque te vês agir, a falar, o fulcro do teu pensamento, durante o dia, é fazer sem denodo o esforço de caminhar entre estas sombras como se fosses uma delas. Não te distancies.
Gambiarras, lâmpadas miniaturais, pinheiros factícios. O mito já não tem “dentro”.


[191]

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Fernando Couto

IMPALA

Elegância devia ser o teu nome
ou mesmo graça e harmonia
ou ainda leveza, etérea leveza.

Saltas e o arco nasce da terra
com o fulgor do voo do colibri.

O airoso ganha todo o esplendor
no diáfano contorno do teu corpo.

Vestem-se os reflexos do sol
nos vários areais desertos,
os seus variados reflexos.


[190]

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Glória de Santana

SEGUNDO POEMA DA SOLIDÃO

Serei tão secreta
como o tecido da água

e tão leve

e tão através de mim deixando passar
toda a paisagem

e todo o alheio pecado
do gesto, da presença ou da palavra

que logo que a tua mão me prenda
me não acharás:

serei de água


[189]

domingo, dezembro 11, 2005

Fernando Couto

VERÃO AFRICANO

A plácida cor deste hálito envolvente,
a tangível paz de calor e da savana,
o céu enfeitiçado de azul sem mácula,
a modorra só quebrada pelo canto
e o mar – um velho cão adormecido.


[188]

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Alberto de Lacerda

MOÇAMBIQUE

Ó Oriente surgido do mar
Ó minha Ilha de Moçambique
Perfume solto no oceano
Como se fosse em pleno ar


[187]

domingo, novembro 27, 2005

Rui Knopfli

MÚSICA DE FIM DE DIA

Volto aos velhos livros de antigamente
no quarto comprido e vazio.
Com um silêncio sem estrelas
toco-lhes amargurado.
Para lá da poeira e da alteração
aparente
nem tudo está mudado.
A cadeira em que te sentavas
ali está, Rui Guerra. E tu onde estarás?
Não faço ideia. Tanto me ressoam
teus passos à cadência do boulevard
como ao pisar duro do planalto de Castela.
Não importam, este abandono e esta secura.
O sentido da vida anda por detrás
do eco das nossas palavras. Tu com ele.
(outros tomas estupefacientes e emborracham-se
de cabotinismos.) Aqui um papel
amachucado com a tua letra:
Estudos para um ensaio de composição plástica dinâmica.
Além, outro do Lagarto-pintado (Onde andará ele?
Olhando o manso Tejo dos poetas?
Amando as prostitutas da rua do Mundo?)
É um poema para Eluard morto:
Deixem-lhe nos lábios
uma asa nervosa de cigarra…
Embora de vós nada saiba
e os livros, os papéis e as conversas,
sejam antigos como a adolescência,
não esqueço a história dos dedos
da mão. Nem vós.
Assim arrasto a minha inutilidade
e lembranças como feridas.
São o que de melhor tenho
com o sonho esboroado daquilo que não fui.
Morcegos desprendem-se dos telhados
com a chegada da noite.
Comovido,
no quarto comprido e vazio,
volto aos velhos livros de antigamente.


[186]

segunda-feira, novembro 21, 2005

Alberto de Lacerda

OUTROS SONS

Já não peço o ardor extasiado
Da luz por dentro das horas mortas
Aprendi onde vivem os pássaros
Já parti de propósito as portas

Já não sei regressar como dantes
Já não choro o que perco Já ouço
Outros sons para além da amurada
Morreu o navio E eu que era moço


[185]

terça-feira, novembro 15, 2005

Alberto de Lacerda

ATRIBUTOS DIVINOS

O pudor é um atributo divino
O impudor selvagem também
E o riso aberto e o choro alto
E a lágrima recolhida nas mãos solitárias da noite
E o sorrir para si próprio que ninguém mais entende

Tudo isso são atributos divinos
São as estações do ano
Próprias do amor


[184]

quarta-feira, novembro 09, 2005

Alberto de Lacerda

PUREZA

Aceitei as artes de amar
Todas até à derradeira
Detesto tudo quanto insiste
O gesto impuro que se exibe
Pois não brotou da alma inteira


[183]

quinta-feira, novembro 03, 2005

Alberto de Lacerda

A MOUZINHO DE ALBUQUERQUE

Tinhas o germe odioso dos tiranos
O fogo sinistro da intolerância
Mas que era feito duma só palavra
Herói soberbo
Ó árvore gigantesca
Que tu próprio abateste
Em vez dos deuses
Que te contemplam a distância


[182]

sexta-feira, outubro 28, 2005

Alberto de Lacerda

MANDIMBA METÓNIA VILA CABRAL

Infância triste mas encantada
Em casas grandes muito sombrias
Outras crianças não as havia
Os meus amigos? Dois grandes gatos
A luz o vento a água a água

Se alguém tocava velho e roufenho
O gramofone de manivela
Eu perturbava-me e a quem me via
Com lágrimas que não entendia

Havia festas de vez em quando
Eram janelas do paraíso
Lembro os adultos. Como eram estranhos
Como eram estranhos e imprevistos

Como eu sentia que não sei onde
Um outro reino de festa e luz
Inteiramente me pertencia
E só de longe naquelas casas
Naquela gente que me era fria
Muito por alto se reflectia


[181]

quarta-feira, outubro 19, 2005

Grabato Dias

NECROLOGIA LAURENTINA

Só netos eram quarenta
sonetos pr’aí uns vinte
bolotos plantou alguns
o patriarca aos oitenta
sabe que bateu no vinte
e é homem como nenhum.

Tem o pelinho na venta
(digo-o sem nenhum acinte…)
E é filiado na un.


[180]

quinta-feira, outubro 13, 2005

Rui Knopfli

PIRÂMIDE. 7

Salvo o recorte da cidade,
ângulos e linhas secas,
arestas cinzentas cortando
a palidez indecisa.
Salvo com nitidez
isso e nada mais:
Um perfil rígido
de tristes tons esmaecidos.
Salvo esse desenho morto,
esses silêncios desabitados,
sem cores, sem vozes,
sem árvores. Isso guardo
e nada mais, a imagem
doente do espaço
outrora habitado.


[179]

quinta-feira, outubro 06, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / IBO AZUL (excerto/2)

Mais adiante, o quintal de njungo Santinho waMucojo, onde gerações de maçanicas amarelas e vermelhas se deixavam engelhar ao sol como a pele que esse velho teria se hoje fosse vivo, espalhadas sobre as esteiras, exalando a luxúria do seu cheiro. E onde castanhas de caju polidas como pedras preciosas se alinhavam nos tabuleiros, pequeno exército disciplinado e brilhante. Uma banca à porta, onde o povo vinha comprar o lanho ao preço que fosse, o aroma das mangueiras manchando o ar, as galinhas debicando ou dormitando nos ramos baixos das árvores, o bico escondido entre as asas. As vozes soltas das mulheres, as gargalhadas sacudindo-se, os chamados golpeando. Gente ordenando e acatando em português antigo ou em kimwane límpido como a água da cisterna. Fresco e escuro como ela.


[178]

domingo, setembro 25, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / IBO AZUL (excerto/1)

Tudo o que o homem traz são vantagens. Detém conhecimentos universais enquanto que à mulher só lhe foram revelados os pequenos segredos da roda das avós, segredos fermentados na repetição do viver diário, máximas vulgares e todavia poderosas, pela idade que já levam. Será mais previsível ser ele a inquirir, ela a responder com monossilábicos pudores ou abertas gargalhadas. É ele que avança, ela espera. No entanto, e sem que o homem o saiba ainda, quando se encontrarem os dois todas as vantagens que ele traz se desmoronarão. Porque quem pergunta tem necessidades, quem responde dá. A fragilidade da sua posição só a descobrirá contudo quando dobrar o velho pontão para lá, ou ela o fizer para cá, dependendo de qual dos dois ali chegar primeiro, e se encontrarem enfim cara a cara. Ele detém a vantagem da idade e das ideias, ela a da terra sobre a qual assentam as suas pernas vigorosas, do fervilhar dessa terra e daquilo que lhe falta ainda descobrir na vida que vai viver.


[177]

domingo, setembro 18, 2005

PEIXE SECO COM ÓLEO DE AMENDOIM

1 kg de peixe seco cortado aos bocados
2 cebolas cortadas aos bocados
3 tomates cortados aos bocados
4 colheres de sopa de óleo de amendoim


O peixe tem de ser demolhado para se extrair o sal e em seguida lavado com água quente. Ferve-se o óleo de amendoim e junta-se a cebola, o tomate e o peixe. Deixe cozer durante vinte minutos. Serve-se quente.

domingo, setembro 11, 2005

Hélder Muteia

NÓS E O DESTINO

Ao Patraquim

O tempo sacode na areia o musgo dos pés
no plasma do orvalho lava o rancor das mãos,
somos pó e pólvora na combustão da História
medimos aos milhões o fragor de cada acto consumado
e entre nós e o destino vai um palmo de esperança
que por sorte marcha a pé.

É o silêncio o mártir predilecto desse gesto
quando a fome não satisfaz a míngua da boca
e as migalhas fermentam o cuspo de cada um
pois é então cruel o nosso grito inevitável
e ardem em brasa os braços cálidos de vontade.

No mesmo chão em que brindamos os sacrifícios
cremos ter semeado a sílaba mágica
dessa oração de manter a mão de outro irmão
lacrada à nossa;
e só na hora de adorar o luar e os batuques frenéticos
nos desfazemos em êxtase
triturando o mesmo pó de que somos feitos.


[176]

domingo, setembro 04, 2005

Grabato Dias

LAURENTINA DESAGRAVADA

Termos fígado é termos moral
sermos importantes é bem bom
evitemos as rimas em al
cala-se a voz turbada,
já de si mesmo etc. … bom!

estavam os suicidas todos à janela
a gabarem uma vista significativa
que vinha à cabeça da comitiva
que vinha na cauda da comitiva
e o ainda mexerem era a única coisa bela
e o ainda mexerem era a única coisa viva
para bem dela.

O marido a fingir que não vê
boa perna e papeira flá
cida do souflé do souflé
e do amor dum pequinois.

e enganemo-nos a achar glorioso
o passado desfuturado
vamos arranjem um papão a falar grosso
já temos um menino medroso
e um cueiro branco mijado


[175]

quarta-feira, agosto 31, 2005

Alberto de Lacerda

MELANCIA

Uma talhada de melancia
É uma rosa com pintas negras
Traz o deleite de quem cicia
Líquidos cantos por entre pedras

É uma frescura é uma cor
Que se dissolve ou se evapora?
É um vento doce sobre o calor
É flor que beja quem a devora

Devora não Tão manso e fundo
Prazer é dado na melancia
Que é brandamente que ela se funde
Na nossa boca que a acaricia


[174]

domingo, agosto 28, 2005

Alberto de Lacerda

LOURENÇO MARQUES REVISITED

A água que murmura espectros lentos
O que houve e não houve e não volta nunca mais
Os quartos sem esperança que os guardasse
As casas sem anjo da guarda

A luz intensa bela e dolorosa
A adolescência dilacerada
A ternura dezoito anos recusada
Na casa dos Átridas
O crime horroroso que não houve
Mas as feridas abriram manaram um sangue
Que penetra implacável as fendas do sono
E me deixa acordado à beira da estrada
Com lágrimas que persorrem
Trinta e quatro anos


[173]

terça-feira, agosto 23, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / AS CORES DO NOSSO SANGUE (excerto)

Entrem. Façam de conta que estão em vossa casa. Eis a Zambézia, terra do chá e do coco, terra da fertilidade. Terra das donas belas e autoritárias, e dos pratos suculentos. Terra do camarão. Diziam isso antes, continuaram a dizê-lo depois. Não sabemos, no entanto, se tudo isso será de fiar. E para que serve. É que temos também cá uma pobreza antiga e arreigada que não sabemos mais o que fazer para nos vermos livres dela. Uma pobreza que só tem vindo a piorar. Uma pobreza que cada um vê e sente de maneira diferente: no Alto Molócuè acenando subservientemente a quem passa, no Alto Ligonha ignorando sobranceiramente quem nos acena. O problema é das estradas, dizem. Houvesse estradas e essa pobreza tomaria uma delas e iria para bem longe daqui. Talvez sim, respondemos nós, e talvez não. É que havendo estradas, e escoando-se por elas os nossos males, pode ser que por elas venham também os males dos outros que ainda não conhecemos. Deixemo-nos portanto ficar assim mais um pouco, a reflectir. Deixemo-nos ficar assim mais um pouco, cada qual no seu lugar. Pensando duas vezes antes de pôr o pé na nuvem de pó se é em Agosto, no mar de lama se em Fevereiro. Ai de nós, que padecemos da doença de ter de caminhar! Ai de nós, que aos espíritos que nos assolam e agitam não há obstáculo – lama ou pó – que os detenha!


[172]

sexta-feira, agosto 19, 2005

Hélder Muteia

PRESENÇA

Sou dos que ainda estão presentes
e bebem do amor a única ausência.

Quantos pedaços de mentira
retenho na viscosidade do meu cuspo?

Quantas verdades apaixonadas
reclamam ansiosas o esperma das palavras?

Nenhumas, talvez, nenhumas…
escravizo o silêncio
e faço dele o meu mensageiro.

Estou presente em tudo ou mais
e aí onde me procurarem
será a minha próxima ausência.


[171]

segunda-feira, agosto 15, 2005

José Craveirinha

FÁBULA

Menino gordo comprou um balão
e assumou
assoprou com força o balão amarelo.

Menino gordo assoprou
assoprou
assoprou
o balão inchou
inchou
e rebentou!

Meninos magros apanharam os restos
e fizeram balõezinhos.


[170]

sábado, agosto 06, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / O HOTEL DAS DUAS PORTAS (excerto)

As minhas colegas andam sempre com revistas: a Jours de France se são snobs, o Paris Match se preocupadas com o mundo, o Reader’s Digest se têm a mania que lêem, o Capricho ou o Grande Hotel se ainda são sensíveis ao romance e esperam uma vida melhor; enfim, a Plateia ou a Crónica Feminina se são recém-chegadas, saloias, com saudades da terra de onde vieram. Quanto a mim, gosto de literatura.
Lia o Bonjour Tristesse (não sei se conhecem), que lamentavelmente nunca cheguei a acabar e agora nunca mais terei oportunidade de o fazer. Lembro-me de que achei curiosa a coincidência do enredo também se tecer numa praia, envolvendo uma rapariga que, guardadas as distâncias, até era parecida comigo. Ou, mais exactamente, de quem eu me sentia próxima. O mesmo mar imutável no seu repetido movimento; a mesma areia pesada, imune ao tempo; o mesmo sol lento e monótono. E, todavia, tudo se transformando velozmente em redor da rapariga e dentro dela. Também eu sentia uma transformação intenso fermentando dentro de mim, embora, ao contrário dela, não soubesse ainda definir-lhe os contornos. Nem suspeitasse quão radical acabaria por ser.


[169]

sábado, julho 30, 2005

Jall Sinth Hussein

BASMA (9)

Deixa que a memória
Seja o lugar que esqueceste
E vem sem voltar


[168]

domingo, julho 24, 2005

Rui Knopfli

NAVIO NO PORTO

Vamos até ao cais ver o navio
panamense.
Com as suas cores sujas,
a tripulação descalça e bronzeada,
de feições índias e mulatas,
- tem um aspecto estranho o navio
Panamense.
Na franja doirada de sol
paira o gárrulo das camisas
e, sobre a brisa molenga,
flutuam fonemas espanhóis.
A gente vê cá em baixo
o negro, mais negro do carvão,
cirandando debruçado
e, lá em cima,
a cor e a música das vozes
em torno dum transístor pequeno.
A gente vê uns e vê os outros,
vê mares abrindo-se
e cais fechando-se.
E a gente pensa, olhando com olhos
estranhos
a estranheza do navio panamense.


[167]

segunda-feira, julho 18, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / CASAS DE FERRO (excerto/2)

De dia, calhando estar a maré baixa, descia o Povo dos barcos a estender os seus produtos no areal. Surgia ali um bazar desarrumado e barulhento que, embora sendo igual, era muito diferente dos restantes bazares conhecidos. O peixe, fresquíssimo, era pescado ali mesmo no local, quando ainda o tapava a maré. Havia gordas mulheres vendendo as farinhas, as couves e as cebolas; cesteiros com os seus cestos acabados de entrançar, cheirando ainda ao cheiro acre da seiva da palha; rapazes vendendo cigarros à unidade ou apalpando as capulanas para comprovar o macio do pano com que eram feitas; raparigas passeando as suas cabaças de bebida fermentada, as suas latas de amendoim torrado com tal competência que a pele se soltava com um sopro e saía voando, etérea.


[166]

quarta-feira, julho 13, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / CASAS DE FERRO (excerto/1)

Afloram nessa folha branca, meio enterrados nela, grandes barcos que aprecem ter sido espalhados ao acaso por Deus ele próprio, no tempo em que era criança e ali gostava de brincar. Um enorme petroleiro guardando do tempo antigo, quando ainda navegava, a mesma solene majestade; mais adiante, um modesto e inclinado navio de cabotagem de obscura história e pouco esclarecida função; postado entre os dois, um curto mas maciço barco de pesca com hirsuta cabeleira de grandes guindastes e enormes roldanas de onde pendiam umas correntes ferrugentas, à ré uma abertura tão escancarada que nos perguntamos como terá ele conseguido evitar que o mar lhe invadisse os interiores, quando era jovem e ainda navegava, Mais ao longe outros ainda, menores e de mais reduzido interesse, sem que se saiba se é a distância que os faz assim, se a impossibilidade de lhes chegar perto, mesmo na maré vazia. Tão diferentes todos, na forma e na altura, apenas partilhando a massa de que eram feitos: um ferro pardo nos dias enevoados, laranja quase vivo nos de sol, raiado de tons esverdeados que eram restos do sarro que a saliva do mar deixava neles ao lambê-los todos os dias. Disparando um brilho intenso à luz vermelha do fim da tarde, que era o sol reflectindo-se nos milhões de cracas que traziam agarradas aos costados – desorganizado reflexo. E à noite mais escuros que a própria escuridão, imóveis vultos, estranhos animais que ali se deixaram petrificar com pré-histórica paciência. Quando o mar se retirava ficavam eles secando ao sol, as cracas fervilhando uma cutânea respiração que de perto provocava intenso ruído, como se o sol os estivesse fritando. Depois, o mar voltava lentamente, molhando-lhes primeiro os ferrugentos cascos, logo depois subindo-lhes nos âmagos, onde provocava inúmeros remoinhos, e finalmente cobrindo-lhes o corpo inteiro nos mais baixos, quase todo nos restantes, deixando-lhes apenas os cocurutos de fora; e eles pacientes, dilatando e encolhendo, rangendo a dor da chegada e da partida das marés e dos dias.


[165]

sexta-feira, julho 08, 2005

José Pastor

A PESSOA DE JOSEFANE FICOU NO MASSACRE DE MALUANE, MAS SEU CORPO VEIO A MAPUTO PARA PÔR VELAS

Uma rajada de metralhadora
e ele caiu do camião.
Rachou-se o cóccix.
Coaxaram as rãs do rio vizinho.
Cócegas no sangue dele.
O primeiro grito foi
o canto plangente do cisne.

As árvores deliravam
ruídos de harpa. A morte,
com a sua foice aguerrida,
saqueou-lhe todo o sangue baboso
e levou-lhe a cruz ao calvário
doloroso da fossa comum.

O rio de lágrimas secou
na roda dentada da vida.
A moagem do coração parou.
Os açudes que represam o sangue
das veias desmoronaram-se.

No seu organismo
só ficaram gemidos de grilo,
primeiro;
piares de coruja,
depois;
e o silêncio sepulcral dos vermes,
por último.

A morte encafuou-se no seu ninho.
E lá, dentro de Josefane madrugador,
ficou quietinha e satisfeita
a pôr seus ovos de cotovia.

E um louva-a-deus
foi o primeiro ser vivo
a pousar no seu corpo morto.

Eu vi!, com o coração aos pirilampos…


[164]

segunda-feira, julho 04, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / O PANO ENCARNADO (excerto/3)

(…) e viramos o olhar para fora, para ver quem passa.
Serão crianças aos pares a caminho da madrassa, rapazes com rapazes, barulhentos; raparigas com raparigas, em silêncio e de olhos postos no chão, tirados de lá apenas para varrer em volta e queimar como fogo num curto instante; velhos sem idade, a cabeça os cofiós, montados em também velhas bicicletas, que chiam e tremem mas avançam sempre; belas mulheres transportando coisas à anca ou à cabeça; e turistas, quase sempre italianos.
Guarda che bello!
Entram por uma margem e saem pela outra do estreito campo de visão que a porta nos permite, não dando sequer tampo de reter feições, que por isso nos parecem tão iguais. Como se fosse apenas um par de crianças, um velho, uma bonita rapariga, dois ou três turistas passando e tornando a passar, sempre os mesmos, mudando apenas o que trazem vestido para nos confundir. Como se fossem modelos do senhor Rashid desfilando naquela curta passarelle para nos dar ideia das potencialidades da Alfaiataria 2000.


[163]

quinta-feira, junho 30, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / O PANO ENCARNADO (excerto/2)

Se ainda houver dúvidas, puxe pela memória, cliente,
diz ainda o senhor Rashid, achando que temos aspecto de ter memória,
e lembre-se de um certo fato da melhor fazenda riscada que o senhor doutor Arantes e Oliveira gostava tanto de usar no tempo em que era Governador-Geral, e que lhe assentava a matar; levou-o daqui, éramos já Alfaiataria 2000, embora ainda sem Jamal, nessa altura soando a negócio mais que de futuro, espacial, marciano. Mais avançado que ele, e mesmo assim só um ano, apenas aquele filme americano que passou à época no Alemida Garret, em Nampula, e a tanta gente admirou. Pagou o senhor Governador pelo fato uma pechincha. Há até uma fotografia onde tudo o que ele veste é meu excepto as extremidades, ou seja, o chapéu que usava alternadamente na cabeça ou na mão e consta que foi Salazar ele próprio que lho enviou, e os sapatos que não sei onde os comprou pois não se pode saber tudo. Não sou e veríamos nessa fotografia um Governador-Geral todo nu, de sapatos nos pés e chapéu na mão.


[162]

sábado, junho 25, 2005

Marcelino dos Santos

SONHO DE MÃE NEGRA

Mãe negra
Embala o seu filho
E na sua cabeça negra
Coberta de cabelos negros
Ela guarda sonhos maravilhosos

Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Que o milho já a terra secou
Que o amendoim ontem acabou

Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho iria á escola
Á escola onde estudam os homens

Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Os seus irmãos construindo vilas e cidades
Cimentando-as com o seu sangue

Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho correria na estrada
Na estrada onde passam os homens

Mãe negra
Embala o seu filho
E escutando
A voz que vem de longe
Trazida pelos ventos
Ela sonha mundos maravilhosos
Mundos maravilhosos
Onde o seu filho poderá viver.


[161]

terça-feira, junho 21, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / O PANO ENCARNADO (excerto/1)

Para entrar na Ilha de Moçambique é necessário atravessar a ponte. Ponte estreita, metálica, quase infinita, que nos leva da terra firme para o outro lado. Como sempre, há a versão daqueles que olham a Ilha com estranheza e a dos outros, que a consideram o dentro do mundo, e ao outro lado o mato. De qualquer maneira, sendo ou não como cada um diz, é na ponte que reside todo o mistério pois que, unindo, ela traz à lembrança a separação. Sem ponte seria um mundo à parte; com ela, transformou-se a Ilha numa ilha, num espaço fechado onde só pela ponte se entra ou sai. Como em todas as ilhas, também aqui os habitantes são inquietos, olhando o continente com desdém, outras vezes como se o desejasse. Nunca se decidindo, todavia, a alcançá-lo.


[160]
Bibliografia essencial: João Paulo Borges Coelho, Índicos Indícios I - Setentrião, Caminho

domingo, junho 19, 2005

Julius Kazembe

O GIRASSOL

O brilho inteiro das galáxias
a latejar no girassol
enfurecido
desdobrando-se em arco-íris
para a morte sobrevivida
entre os gomos do canto.
Um barco é uma faca que rasga
Essas dunas cheias de sortilégios
E de luz as salpica.
Reapetece.
A asa fresca da madrugada
Encrespará levemente
Dos corpos nus a seda
Para outra vez.


[159]

segunda-feira, junho 13, 2005

Jall Sinth Hussein

BASMA (51)

Tu ficaste só
quando tua mãe te deixou
em redor do mundo


[158]

quarta-feira, junho 08, 2005

Domi Chirongo

CHIMURENGA

Nesta saudação
quilombola
há uma bola
p’ra ser chutada
estudada
e aprofundada,
é assim mesmo
a caminho
do nosso
ninho
entoamos
este hino
de luta
entre luto
e orgulho
glória
e esperança
prosseguimos

Chimurenga,mano
nosso grito
nossa luta
p’la dignidade
e identidade
africanas
sempre
em frente
phambeni
aqui, ali
e acolá
bola p’ra frente
como Pelé
pú, pú, pú, pú
eis a escolha
de resistência, mano
não te escondas
a vitória
é sempre certa
quando justa


[157]

quarta-feira, junho 01, 2005

Isabella Oliveira

MEMÓRIA DA ILHA

Ilha de Moçambique, 1972

Giorgio e Silvana passeiam abraçados pelas ruas estreitas da ilha, gozando a brisa que a chuva, ao fim da tarde, deixou. De súbito, param para observar a figura que caminha nas arcadas semi-iluminadas da Fazenda, um dos poucos edifícios onde flutua a bandeira colonial. Trata-se de uma mulher indiana, com o rosto enrugado e excessivamente pintado. O estado decadente da seda que traja e os caracóis grisalhos que lhe irrompem do esburacado lenço garrido provocam aos dois sérias dúvidas sobre se não estarão na presença de um reencarnado manequim dos loucos anos vinte. Na boca, uma boquilha de prata, cuja filigrana condiz com a dos anéis e pulseiras que lhe adornam dedos e pulsos. Só o cheiro do tabaco, barato, não faz sentido. O cigarro apaga-se e Giorgio não perde a oportunidade para se aproximar. Quando lhe estende o isqueiro, a mulher arregala os olhos e grita:
– Afasta-te de mim, hippy! Queres pegar-me fogo?, pois morrerei como Joana d’Arc! Mas morro de pé, ao contrário dos que me traíram!

Os italianos riem e continuam o passeio. Aquela personagem não destoa no imaginário da ilha. Acabaram de assistir a uma cerimónia tradicional, onde os ritos muçulmano e macua se cruzaram e ao longo da qual os olhos de Silvana se fecharam algumas vezes para não verem um curandeiro perfurar o próprio rosto com grossas agulhas de ferro, sem que uma só gota de sangue tivesse jorrado ou qualquer sinal de dor se descortinasse. Ao seu lado, Giorgio fitara intrigado o homem de cofió vermelho, vestido de branco dos pés ao pescoço, cujos gestos eram acompanhados em silêncio por uma multidão de crentes. Ao menos, àquela gente, não tinham os portugueses conseguido domar os deuses, concluiu.

Estão na ilha clandestinos, disfarçados de um vulgar casal de turistas. Dois meses antes, o médico recebera em Dar-es-Salam um livro de fotografias, da autoria de um jornalista de Lourenço Marques, que o fizera pedir ao movimento uns dias de férias. Também ele quis sentir ao vivo a poesia de “A Ilha do Próspero”.


[156]

sexta-feira, maio 27, 2005

O primeiro poema apareceu há precisamente dois anos.
Desde então, compareceram à sombra dos palmares:

De Longe Esta Ilha Parece Pequena (Canção Popular)
Eis o Que É Belo Neste Mundo (Canção Popular)
Alberto de Lacerda - Regresso
Alberto de Lacerda - L'Isle Joyeuse
Alberto de Lacerda - Ponta da Ilha
Alberto de Lacerda - A Minha Ilha
Alberto de Lacerda - Jóias
Albino Magaia - Descolonizámos o Land-Rover
Albino Magaia - No Sul Nada de Novo
Amin Nordine - Chapa
Amin Nordine - Do Lado da Ala-B
Campos Oliveira - O Pescador de Moçambique
Carlos Cardoso - Ruth First
Carlos Gil - Um Bairro
Eduardo White - O Manual das Mãos (excerto)
Eugénio Lisboa - No Tempo em Que, Fernando
Eugénio Lisboa - Origem
Fonseca Amaral - L'Aprés-Midi D'un Gala-Gala
Fonseca Amaral - Penitência
Fonseca Amaral - Passagem de Nível
Fonseca Amaral - Para Um Barco Que Apodrece a Meio da Baía
Fonseca Amaral - Karamchand
Fonseca Amaral - Exílio
Fonseca Amaral - S'Agapo
Frei Bartolomeu dos Mártires - Um Caminhar na Cidade de Pedra e Cal
Frei Bartolomeu dos Mártires - As Ruínas Derrotadas
Glória de Santana - Dia Africano
Glória de Santana - Bairro Negro
Grabato Dias - As Quybyrycas (canto nove - fragmento)
Grabato Dias - Laurentina Cesariniana 2
Grabato Dias - Baixa Laurentina
Grabato Dias - Laurentina Xipamanensis Ronga Maxilar
Grabato Dias - Laurentina Djambular Cafezinho das Dez
Gulamo Khan - Xitimela
Gulamo Khan - Moçambicanto I
Heliodoro Baptista - À Volta das Origens
Isabella Oliveira - M. & U. Companhia Ilimitada (excerto)
Jall Sinth Hussein - Índico
Jall Sinth Hussein - Ilha de Moçambique 1972
Jall Sinth Hussein - Basma (72)
Jall Sinth Hussein - Tangerinas em Redor da Minha Vida
Jall Sinth Hussein - Mar
Jall Sinth Hussein - Moçambique 75 - Praça Mouzinho de Albuquerque
Jall Sinth Hussein - São as coisas e têm alma própria
João Dias - Gôdido
João Dias - Indivíduo Preto
João Paulo Borges Coelho - As Visitas do Dr. Valdez (excerto/1)
João Paulo Borges Coelho - As Visitas do Dr. Valdez (excerto/2)
Jorge Viegas - O Núcleo Tenaz
Jorge Viegas - Do Meu País
Jorge Viegas - Círculo de Sombra
José Craveirinha - Poema de JC Num Dia em que Estava Todo de Negro
José Craveirinha - Aforismo
José Craveirinha - Esperança
José Craveirinha - Primavera
José Craveirinha - Moçambiquicida
José Craveirinha - Menus
José Craveirinha - Quero Ser Tambor
José Craveirinha - O Bule e O Blue
José Craveirinha - Xigubo
José Craveirinha - Grito Negro
José Craveirinha - África
José Craveirinha - Boato do Velho Ussene
José Craveirinha - Mina Antipessoal
José Craveirinha - Gente a Trouxe-Mouxe
José Craveirinha - Trouxa de 8 Couves
José Craveirinha - Pátria
José Craveirinha - Anti-Lirismo Inútil
José Craveirinha - A Raiva que se Limita
José Craveirinha - Amanhã
José Craveirinha - Polana
José Craveirinha - Natal
José Craveirinha - Mampsincha
José Craveirinha - João Matangulana
Júlio Carrilho - Porta de Água
Leite de Vasconcelos - Receita para uma Infracção
Luis Bernardo Honwana - As Mãos dos Pretos
Luis Carlos Patraquim - Muhípiti
Luis Carlos Patraquim - Moradas
Luis Carlos Patraquim - As Casas
Luis Carlos Patraquim - Lidemburgo Blues 5
Luis Carlos Patraquim - Elegia do Nilo
Luis Carlos Patraquim - Frei Mutimáti Grabato João
Luís de Camões - Os Lusíadas (I, 54)
Mia Couto - O Primeiro Astronauta
Mia Couto - Poema Mestiço
Mia Couto - (Escre)ver-me
Mutimati Barnabé João - Eu, O Povo
Mutimati Barnabé João - Dia 7
Nelson Saúte - Mulher de M´siro
Nelson Saúte - Testamento Para os Meus Filhos
Noémia de Sousa - Poema Para Rui de Noronha
Noémia de Sousa - Poema da Infância Distante
Noémia de Sousa - A Billie Holiday, Cantora
Noémia de Sousa - A Mulher Que Ri à Vida e à Morte
Noémia de Sousa - Porquê
Noémia de Sousa - Justificação
Noémia de Sousa - Nossa Voz
Noémia de Sousa - Moça das Docas
Noémia de Sousa - Bayete
Noémia de Sousa - Se Me Quiseres Conhecer
Nuno Bermudes - Natal em África
Orlando Mendes - Rigor
Orlando Mendes - Instante Para Depois
Pedro Muiambo - A Enfermeira da Bata Negra (excerto/1)
Pedro Muiambo - A Enfermeira da Bata Negra (excerto/2)
Pedro Muiambo - A Enfermeira da Bata Negra (excerto/3)
Rui de Noronha - Surge et Ambula
Rui de Noronha - À Tarde
Rui de Noronha - Grito de Alma
Rui Knopfli - Então, Rui?
Rui Knopfli - Naturalidade
Rui Knopfli - Ilha Dourada
Rui Knopfli - O Povo da China Visto do Alto-Maé
Rui Knopfli - Na Morte de Reinaldo Ferreira
Rui Knopfli - Proposição
Rui Knopfli - Dana
Rui Knopfli - Carta para Um Amor
Rui Knopfli - Ponta da Ilha
Rui Knopfli - No Crematório Baneane
Rui Knopfli - Baldio
Rui Knopfli - Kaap Die Goeie Hoop
Rui Knopfli - O Campo
Rui Knopfli - Retorno
Rui Knopfli - Nenhum Monumento
Rui Knopfli - II. Pátria
Rui Knopfli - Mesquita Grande
Rui Knopfli - Dawn
Rui Knopfli - Hidrografia
Rui Knopfli - Aeroporto
Rui Knopfli - Inventário
Rui Knopfli - Mangas Verdes com Sal
Rui Knopfli - Poemazinho Reaccionário Para Uso Particular
Rui Knopfli - Nunca Mais É Sábado!...
Rui Knopfli - Certidão de Óbito
Rui Knopfli - Epigrama
Rui Knopfli - Auto-Retrato
Rui Knopfli - Praça Sete de Março
Rui Knopfli - A Pedra no Caminho
Rui Knopfli - Visitação (1)
Rui Knopfli - Sem Nada de Meu
Rui Knopfli - S. Paulo
Rui Knopfli - Cão do Nilo
Rui Knopfli - A Descoberta da Rosa
Ruy Guerra - A Morte do Velho Guerreiro Swazi
Sebastião Alba - Cidade Baixa
Sebastião Alba - Reinaldo Ferreira
Sebastião Alba - Mais Do Que Do Outro
Sebastião Alba - Ícaro
Sebastião Alba - Ninguém Meu Amor
Sebastião Alba - O Navegador
Sebastião Alba - Como os Outros
Suleiman Cassamo - O Rascunho
Victor Matos e Sá - A Rui de Noronha
Virgílio de Lemos - Ouamisi

terça-feira, maio 24, 2005

Rui Knopfli

A DESCOBERTA DA ROSA

«Rosas não me dizem nada…»

Dez anos de poesia, fora a gaveta
e descubro que, a não ser ocasionalmente
e em ar de troça, jamais me debrucei
deveras sobre o tema da rosa. De resto
eram para mim, creio, marginais as flores.
Vícios de formação e juventude,
uma tão intensa preocupação do humano
que olvidei a discreta angústia da rosa.
Outros, não o ignoro, nela tiveram seu princípio
para a deixarem depois esquecida entre as páginas
de um qualquer velho livro, tão cheios eles,
de ternura e simpatia fraternas, coisas
que já eludem este coração envilecido.
Salvo o devido respeito por tudo quanto é útil
e estimável na terra, falta-me o tempo
e o ânimo para as empreitadas mais ingentes.
E o pouco que me sobre tenciono aplicá-lo
em tarefas humildes como o cultivo
destes versos, algum súbito amor inadiável
e a lenta e minuciosa descoberta da rosa.


[155]

quinta-feira, maio 19, 2005

Sebastião Alba

COMO OS OUTROS

Ao Rui Knopfli

Como os outros discípulo da noite
frente ao seu quadro negro
que é exterior à música
dispo o reflexo Sou um
e baço

dou-me as mãos na estreita
passagem dos dias
pelo café da cidade adoptiva
os passos discordando
mesmo entre si

As coisas são a sua morada
e há entre mim e mim um escuro limbo
mas é nessa disjunção o istmo da poesia
com suas grutas sinfónicas
no mar.


[154]

segunda-feira, maio 16, 2005

José Craveirinha

JOÃO MATANGULANA

Refugiado na emergência do volante
João matangulana súbito conseguiu
reforma de condutor
há 35 anos
encartado.

No paradeiro do emboscado Mercedes-Benz
a família identificou João Matangulana
pela meia chapa de matrícula
apanhada no entulho.


[153]

sábado, maio 14, 2005

Grabato Dias

LAURENTINA DJAMBULAR CAFEZINHO DAS DEZ

Tivera eu a certeza
que o deus, que parte e reparte,
se fica co’a melhor parte
em cima de sua mesa…

e faria uma loucura
qualquer coisa de bonito
que dignificasse o aflito
da minha medianura!


[152]

segunda-feira, maio 09, 2005

Luís Carlos Patraquim

FREI MUTIMÁTI GRABATO JOÃO

«Vemos só o que vemos sabendo que há mais
Do outro lado do aquilo, no delá da galba»

P’la estrada de Machava, à esquina da Meseta,
como Rolando sob a última fachada
ou como quem tropeça piqueno
e um Morto muito
lhe deve versos – o cono! –
mai-lo zarolho que lhe deu
claramente visto o Povo,
lá vai Frei João, o Mutimáti,
ao grabato da alma.

Psiu, D. Antónia; João dos barcos
desancorados da infância; Amélia,
múgica guitarra onde sob os cabelos
a voz e tu, menino,
que arado adunco nos mostraste em obra,
visto que o autor é o seu próprio processo,
e dele nem Virgílio o nomeia
em verde prado onde os deuses apascentou;
Psiu, que p’lo caminho de Inhaminga,
p’lo caminho de Santiago com a Rosa na Arca
e a sapata grossa ecoando, cavernosa,
~uas quybyrycas de Barcelos,
lá vai Mutimáti mai-lo cachimbo
de chicaocao e canho adornando ogres,
floresta obscura, parva savana nítida.

D’oiro menino e número ele busca, um zunido,
não de Deucalião a curva da pedra batendo
e a terra ferida e nem os círculos
sobressaltando as águas, tingindo-as
de um cenho triste, mas de puríssimo mel
desenhando o vário Mundo, branco estertor
que da tela golfa e onde pasta
a bela novilha – ou Inês? – sossegada
e Ele sacoleja o tinthohlo
como uma Canção Desesperada.

Haverá odes de haverás e,
no delá da galba, gájaras de Ceres
generosa e um cajueiro em seu júbilo
entesourando a colheita
e os súcios nem o cuspo de um verso teu
merecem onde minucioso te deste à desova
e o Cavré ainda salga os velhos espíritos
e o Rui sangra a sombra ardida e verde
e tu a veres só o que vês
sabendo que há mais do outro lado
do aquilo onde agora estás.


[151]

quarta-feira, maio 04, 2005

Pedro Muiambo

A ENFERMEIRA DA BATA NEGRA (excerto/3)

27.

Samora Machel, uma biografia por censurar

Samora Machel tinha nascido marcado pela sina da rebeldia. Por exemplo, o primeiro ano da sua vida durou apenas um ápice. Ele crescia rápido, apressadíssimo, como se tivesse que ir marcar o lugar numa fila de pão. Quando a mãe, sem a autorização paterna, levou-o a baptizar na capela local, ele aprontou uma enormidade: urinou na pia baptismal. E Deus há-de ter ficado de tal forma ofendido, que o condenou quer a não atingir nunca habilitações literárias superiores ao quinto ano, quer a nunca saber falar coreano. O veredicto divino foi traduzido pelo padre, em português corrente:
- Leva-me esse verme daqui para fora!
Mas Samorito ia vivendo a vida que podia.
Punha-se a soluçar quando avistava um colonialista ou, ainda, quando os irmãos mais velhos, invejosos por causa dos mimos que recebia da mãe, beliscavam-lhe as nádegas.
Mas, às vezes, Samora chorava ou dançava ou se ria sem razão aceitável. Certo dia chegou mesmo a chorar horas intermináveis, como sinal de protestocontra o facto de um dos seus irmãos ter-lhe dado a lamber piri-piri. Já adulto, e depois de ascender à presidência da república, Samora veio a ganhar tal sentido de humor que autorizou os serviços da contra-inteligência, o temido SNASP, a investigar qual dos irmãos lhe tinha aprontado tão picante partida; e sentenciou: “Ponham-no o mesmo produto nos olhos”.
Para acabar com aquela choradeira o pai de Samorito, bem disposto, imitou o jeito como os mineiros grampeavam nas minas do Jone, despindo a esposa para o exemplificar…


Samorito gostava muito das formigas.
Um dos hobbies preferidos de Samorito consistia em contemplar as formigas na sua labuta.
Tão cedo abandonava a esteira, dirigia-se a correr para um formigueiro nas traseiras do curral de cabritos e deixava-se ali ficar, esquecido de si próprio e do cheiro nauseabundo, esperando que as formigas assomasse. Era o primeiro a saudá-las com um awuxeni vamakweru.
Até já as conhecia pelos nomes! Elas também o conheciam pelo nome, mas por qualquer razão misteriosa nunca pronunciavam em voz alta.
Adorava também vê-las, as formigas, a trabalhar, ou mais concretamente, a arrastar bichinhos. Aliás, foi nessa época que aprendeu as suas primeiras lições sobre como a união faz a força. Há, inclusive, quem acredite que tenha sido uma formiga que lhe recomendou a organização das jornadas colectivas de trabalho implementadas a seu mando muito mais tarde, após o alcance da independência nacional.
Quando o sol se aprumava e queimava o chão, as formigas viam-se à nora para fazer o seu trabalho. Samorito, cheio de compaixão, pegava no chapéu de palha do pai e, todo bonacheirão, fornecia-lhes sombra. Era o prenúncio do seu “internacionalismo militante”.
Até se dava bem com as temidíssimas formigas vermelhas que moravam, e, para nossa felicidade, continuam a morar, nas árvores (imaginem se morassem debaixo dos colchões), e levam o nome xishangana de swinhonho. Certa vez, mobilizadas por Samorito, quarenta mil e três formigas, e mais uma pequenina – mas muito espertinha -, foram visitar o régulo na sua palhota e puseram-se a mordiscá-lo na abertura entre as nádegas. O régulo despojou-se completamente das vestes, saiu de casa a correr como uma flecha e gritando nyandayeyo!
Em pleno meio da tarde!
Assim ficou a povoação a saber que o seu responsável tradicional máximo tinha as nádegas muito mais escuras do que o resto do corpo, o que deu lugar a um riso comunitário…

Samorito tinha ficado na árvore onde morava o exército formigueiro em nichos feitos com base em folhas verdes, a fazer de babysitter, isto é, a cuidar das crias das formigas.
Humilhado, o régulo da povoação de Samorito procurou vingar-se ordenando aos sipaios que cuspissem sobre todas as árvores da aldeia em sinal de desprezo para com as swinhonho…
Nessa semana, morreram dez sipaios desidratados.
As formigas?
Essas ficaram de facto envergonhadas, de tal forma que se puseram em pranto e não queriam mais abandonar o recôndito dos seus nichos. Mas Samorito apressou-se a consolá-las, dedicando-lhes palavras meigas tais como: “aliadas naturais”, e até ofereceu-se a ajudá-las quando se decidissem por organizar uma aldeia comunal.

Mas estava escrito que o pequeno Samora aprontaria uma “boa” para consigo próprio.
Foi assim: na casa de Samorito gingavam duas goiabeiras muito férteis. O menino, apesar das constantes advertências da mãe, punha-se a devorar desalmadamente as goiabas verdes.
Eis que um belo dia as goiabas decidem fazer uma greve, endurecendo no seu estômago, e impossibilitando-lhe de fazer a caca. Mesmo sentindo uma grande vontade de se aliviar, o esperado cocó não fazia pum. Não conseguia sequer levantar a barriga e, por extensão, todo o seu corpo. E ele, coitadinho, que não sabia o que fazer nessas “desemergências”! Como é que um garoto de cinco anos pode saber, verdade seja perguntada, que um probleminha desses se resolve, por exemplo, tyocoletelando o interior do ânus com um pauzinho? Deixou-se simplesmente ficar onde estava, genuflectido, a soluçar, o pobre coitado.
Na verdade, nem chorar correctamente ele conseguia. O seu era um choro hilariante, que teve, inclusivamente, o condão de fazer rir um dos mais amargos habitantes da povoação, o tal Aquele-que-se-ri-uma-vez-só-por-ano, que coincidentemente transitava por perto. Era um choro assim: ha hem, ha heemu hom haa ha heemu hom haa hem hem hem heemuuuuu…
Só lá ao fim do dia, quando o pai e a mãe regressaram da machamba, é que o seu problema foi finalmente solucionado, mas mesmo eles tiveram que recorrer ao extremoso método do pedacinho de sabão no ânus…
Mas o menino ficara definitivamente traumatizado. Nunca mais na vida conseguiria aproximar-se de uma goiabeira.
Mais tarde, durante a guerra de libertação nacional, instantes antes de os guerrilheiros da FRELIMO atacarem uma base, ele dava orientações terminantes aos seus homens de reconhecimento para localizarem, antes do resto, a posição das goiabeiras.
Oiçamos um depoimento de um guerrilheiro que combateu às suas ordens:
- O comandante Samora Machel era um tipo temerário, menos quando lembrava-se das goiabas. Quando isso acontecia era um “acudam-me os espíritos”: punha-se todo a tremer como uma vara de caniço e corria de um lado para o outro até esconder-se debaixo de uma saia qualquer no destacamento feminino! Aliás, foi assim que ele conheceu a sua primeira namorada. Inclusivamente, quando lhe atacava uma onda de romantismo, costumava dizer-lhe: “o nosso foi um amor ao primeiro cheiro”. Se tivesse tido algum motivo para trair a FRELIMO, como agora tenho, teria aconselhado ao Kaúlza de Arriaga a bombardear a frente de Tete com goiabas aquando da operação “Nó Górdio”.
Depois do triste incidente, o nosso pequeno herói ficou sombrio. Já não se reconhecia nele aquele rebelde temporão infinitamente comprometido com a causa do seu povo. O seu ar fazia até prever o dia em que, já presidente, assinaria um acordo de boa vizinhança e não agressão com os boers, o Acordo de Nkomati, cujo maior, senão exclusivo, proveito para os moçambicanos foi a oportunidade de inaugurar os dentes na polpa do fruto europeu do pecado (a maçã) oferecido em toneladas por Peter Botha, em sinal da suas “boas intenções”, e distribuído pelos hospitais e escolas do país.
Por outro lado, Samorito sofreu também uma profunda perturbação psicológica, caracterizada por dificuldades afectivas, nomeadamente, no relacionamento com os seus irmãos cujos testículos faziam-lhe recordar as malfadadas goiabas.
Como corolário dessa inquietante situação, ele continuou a urinar na esteira mesmo após completar os 10 anos de idade.

Samorito sofria de enurese!
É verdade que, desde os dezoito meses, se fora paulatinamente asseando. Começara pelo cocó. E quando se pensava que, completados os cinco anos, e como é normal na província de Gaza, ele passasse para o asseio nocturno, em termos urinários, eis que a sua estabilidade psicológica conhece o abalo relacionado com o episódio das goiabas revoltadas.
Quem regressasse a sua casa, não tinha como evitar a enjoativa imagem: mantas e esteiras estendidas ao sol, bem destacadas nas faces, grandes manchas negras provocadas pela persistente exposição à urina. E o cheiro, meu Deus! Era o caso de pensar – como, certo dia, calhou a certo transeunte – que naquela casa se vendia whisky, essa bebida decadente dos capitalistas.
Escusado é dizer o quanto esse fenómeno por muita gente tido como banal – assim nos reportam as revistas que estudam a enurese em Portugal – deixou os pais de Samora inquietos e irrequietos.
Começaram por dedicar longas sessões de piparotes ao pénis do miúdo de cada vez (sempre) que as micções involuntárias sucediam. Mas, curiosamente, essa terapia não foi bem sucedida.
Seguidamente adoptaram o sistema de acordá-la no meio da noite, convidando-o a aliviar-se no penico. Mas, invariavelmente, por essas alturas, a bexiga do menino apresentava-se vazia. Ele, intempestivo, já se tinha aliviado nos cobertores.
Foi então que se decidiram por cortar o… cortar com a ingestão de líquidos nas horas vespertinas, mas tiveram que desistir da ideia, pois o pequeno ameaçou-lhes trocar o chichi pelo cocó.
- Passo a fazer a caca na cama, eu – esgrimiu.
Mas quando os piolhos tomaram de assalto a casa, a ponto de aparecerem como ingredientes nos pratos confeccionados pela avó de Samorito, aí então os seus pais tomaram a decisão de o levar ao curandeiro onde ficou internado durante uma semana. O curandeiro prescreveu-lhe uma terapia muito original: sempre que o menino urinava na cama, arranjava as coisas de modo que ele encontrasse, ao despertar pela manhã, uma maria-café enrolada ao pénis… e deixava-o gritar desenfreadamente sem consagrar-lhe nenhum tipo de mimos…
Esta última terapia teve um êxito estrondoso. Dir-se-ia mesmo, um êxito desmesurado. Para lá da conta. Samora nunca mais pôde urinar; isto é, em situação alguma, fosse na cama, fosse noutro sítio qualquer – pelo menos não da forma ortodoxa, porquanto a sua via urinária transferira-se definitivamente para o ânus.
Metia cá uma impressão vê-lo sempre a agachar-se, como a matriarca Eva fazia, para urinar.
Mas este episódio viria, ao longo da sua combativa vida, permitir-lhe poupar tempo suficiente para ensaiar aquele seu gesto famoso, ou seja, o dedo em riste, uma vez que as suas necessidades menores se tinham juntado, numa sinergética inovação, àquelas maiores.
Por outro lado, Samora reassumiu finalmente a sua característica rebeldia.


[150]

sábado, abril 30, 2005

José Craveirinha

MAMPSINCHA

A mampsincha
é um fruto africano
rasteiro ali onde nasce
e cresce de cor verde
enquanto púrpuro não se torna
e já sazonado o levanta
nas puras mãos de ébano
o negrinho na gula do seu caroço.


[149]

terça-feira, abril 26, 2005

Jall Sinth Hussein

SÃO AS COISAS E TÊM ALMA PRÓPRIA

São as coisas e têm alma própria
e as nomeio pedra água pau casa
e me equilibro e perco em seu centro
mas as trato como pessoas iguais a mim.
Nunca estou só como as crianças
que frente a ninguém estão no meio dos seus amigos.
São as coisas e povoam tudo como pessoas
e como pessoas me cercam e seu coração lhes bate e me chama.
Suas almas atravesso e as trato por tu


[148]

sexta-feira, abril 22, 2005

Pedro Muiambo

A ENFERMEIRA DA BATA NEGRA (excerto/2)

Havia quem a chamasse uma mulher sem idade. E quem a considerasse uma convergência de graças infinitas. Ou uma alavanca de desvarios.
Os homens escondiam-se com frequência das suas esposas, faziam-se aos lugares mais recônditos das suas habitações, abriam as braguilhas, introduziam as mãos e, voilá, entregavam-se à arte humana mais remota – a de ordenhar o próprio touro – deixando escapar mudas interjeições.
Mas não eram apenas os homens que suspiravam por ela: também as mulheres.
Viam-na, aquela borboleta, esvoaçando entre as bancas do mercado, e todas elas estacavam o passo, e antes mesmo que a auto-estima lhes impedisse, debruçavam-se aos seus pés, minimizavam-se, por assim dizer, em submissa rendição.
E quando, de noite, à cama se faziam, e eventualmente lá não encontravam os esposos, voltavam a pensar nela, obsessivamente, na aura que a iluminava e naqueles seios agressivos, o andar arrebatador, enfim…
“Pensam no infinito, estas mulheres”, adivinhava sô Ribeiro, o bom do tuga, que passava a vida a falar dos livros que dizia ter lido, ou do bom azeite de oliveira que dizia ter crescido a saborear lá em Trás-os-Montes, onde nascera. “E macacos me mordam se eu também não desejo o infinito”, rematava, cuidando no entanto que a sua consorte não o ouvisse.
E o que dizer o Ubaldo Delgado, o cooperante cubano que leccionava matemática no centro de formação de professores, em Chibututuíne, a sete quilómetros da vila. Um tipo que se derramava em versos, tão cedo a avistava ou dela ouvia falar, sem se importar com os possíveis escândalos sociais que a sua atitude poderia provocar, nem em traduzir para os seus confrades moçambicanos os seus frémitos românticos.
(…)

O nome dela era Maceda Magaço.
Era mãe de Isayana.

Enfim, ninguém ficava alheio à aura esplendorosa que dimanava daquela mulher. No seu confronto, ou se era do leste ou se era do ocidente. Não-alinhado era uma possibilidade inexistente.
O próprio governador da província chegara a afirmar em pleno comício, exibindo-a: “Ela é a máxima demonstração de que a revolução socialista pode alcançar o que se supões estar apenas na alçada dos deuses: o milagre da beleza. Sendo assim, precisamos de deus para quê?”
Fortes aplausos.


[147]

segunda-feira, abril 18, 2005

Victor Matos e Sá

A RUI DE NORONHA

Poder, Amigo
chamar-me irmão na tua dor
já que não o posso ser
na mesma cor;

Ja que um destino diferente
e os anos,
Puseram longas, infinitas margens
entre as nossas vidas
afastadas...

Tu, lá no último Sonho
onde a verdade existe em cada um
como um sangue puro,
como uma lua natural.
E eu
ainda nesta luta
de viver
sofrendo
o mesmo mal.

Este malfeito destino
desde meus sonhos primeiros
de menino;
este mal de chorar sempre
a dor comum dos desgraçados
e ter lágrimas ainda
para os nossos sonhos
destroçados...

Esta mal
só mal para o mundo
a nossa única essência de viver
e contar
diversamente
a mesma eterna agonia...
Este mal que vem a ser
a poesia...

Deixa-me, pois, Amigo
(Diante qualquer noite deserta
em que o silêncio
e a sonolência de tudo
seja para nós
a única porta inteiramente aberta
e o nosso altar)
ficar contigo um só instante,
- apenas o bastante
para te Amar!

E poder, Amigo,
chamar-me irmão da tua dor
já que não o posso ser
na mesma cor...


[146]

sábado, abril 16, 2005

Pedro Muiambo

A ENFERMEIRA DA BATA NEGRA (excerto/1)

Brincava no jardim frontal da vivenda que juntamente com outras cinco dezenas, de igual pequenez e ordinarice, inventavam aquela vila sobranceira ao Incomáti – quando as surpreendeu.
Precipitavam-se, num jogo de matyangwe-tyangwe, para um buraquito cavado no centro do relvado.
As formigas.
Agachou-se a acolheu-as, qual monge solene, com a sombra do seu corpinho. Enlevado. Boquinha semiaberta. Olhos reflectindo estrelas inexistentes no amplo azul celeste. Eram uns olhos grandes, justamente a medida da interrogação das crianças, na sua ingénua, entusiástica e mórbida filosofia.
E tão voraz era a sua curiosidade, que quase derrubava o formigueiro com a potestade da sua contemplação.
Foi no ano em que a fome chegou pelas asas dos gafanhotos.
Nesse inolvidável ano de 1980.
Isayana Magaço prosseguia a sua infanta desvenda do cosmos enquanto, lá das nuvens, aos olhos dos passarinhos, parecia entregue aos fúteis mistérios dos homens.
Na verdade, naquele ângulo, era-lhes difícil reparar que o garoto batia também as suas asas, à sombra daquele eucalipto imponente.


[145]
Bibliografia essencial: Pedro Muiambo, A Enfermeira da Bata Negra, Campo das Letras

domingo, abril 10, 2005

Jall Sinth Hussein

MOÇAMBIQUE 75 – PRAÇA MOUZINHO DE ALBUQUERQUE

Era um dia solitário e pequeno
dia confidencial e toscamente feito
dia de homenagem nas traseiras

o instante parecia feito para recuar.

Quando homens sem nome
apearam Mouzinho
vi a natureza confusa das coisas
o mundo de pressa e emenda que me levava ignorado.

Eu não – que não estava ali –
mas com uns olhos limpos que podiam ser os meus.


[144]

sexta-feira, abril 08, 2005

GALINHA À CAFREAL

1 frango
1 colher de sopa de azeite
Sumo de meio limão
4 piri-piris
1 colher de chá de sal
1 colher de chá de pimenta
4 dentes de alho picados

Abrem-se os frangos pelas costas e espalmam-se. Misture o azeite, sumo de limão, piri-piri, sal, pimenta e alho. Tempere a galinha com esta mistura. Grelhe virando de vez em quando. Unte de vez em quando com o molho restante à medida que se vai grelhando. Deve ficar bem picante.

segunda-feira, abril 04, 2005

Rui Knopfli

CÃO DO NILO

Aqui deixo os mortos que me pertencem e os vivos
com que me reparto. Cão do Nilo, sobreviverei bebendo
na corrida, entre o ranger metálico das culatras
e o bafo cálido da pólvora. Sigo ao sabor da corrente,
um destroço à tona de água. Perto do fim, o cerco.

Adeus amigos, ternura diluída na neblina, começo
a esquecer-vos. Perdoam-me os mortos, enigmáticos,
sorrindo e escurece, no corredor, envergonhada, a luz.
De pura cobardia reincide o coração. Na margem
do rio indistintos vultos acenam discretamente.

Transidas, não esvoaçam as aves de outrora,
imóvel e erecto o canavial petrificado. Outras
vozes sepultam já o eco da minha. Foragido
da memória irei por esse mundo além. Amigos,
fantasmas, nomes, lugares sabidos de cor, quero

chamar-vos esquecimento. Não estarei com os que verão
o declive verdejante da montanha, nem alcançarei
a Terra Prometida. Errarei o resto dos meus dias através
de paragens inóspitas, levando comigo a vaga
lembrança de um aceso país povoado de gentes,

coisas e lugares perdidos e sem rosto. O cabo
enfreia a costa que do austro vinha correndo.
Em temporais, vento e névoa, para sempre
mergulhará o continente. Olho adiante.
Sobre meus ombros cerra-se, definitiva, a noite.

Alem, álgida e glabra, abre-se a luz para onde
me empurram tempo e fera ventura. No proscénio
em que se desenrola a tragédia de Lear, a saga
de Tamburlaine, ou a fúria sanguinária de Macbeth,
serei comparsa anónimo revendo, nessas cenas,

lances bem outros e diferentes. Exausto de batalhas
e combates que não travei, de conturbadas situações
em que mais não fui que espectador passivo, dormirei
por fim, transposto o limiar neutro e cinzento onde
não há lápides, lembranças da pátria, ou de coisa nenhuma.

Meus irmãos, meus inimigos desaguados nos esgotos
da Europa, irão urdindo, sob a indiferente,
brônzea miradas dos algozes, espectros e sombras,
por praças estrangeiras talhadas em granito,
silêncio e desolação. Alcácer Quibir, melhor fora

ter adormecido no deserto, melhor fora repousar
no leito das areias, convertido o sonho em ossada,
brancura na distância. Pai, entre os torpes,
fumegantes destroços do Império, teu filho esconde
o rosto e esgueira-se furtivo pelas malhas da diáspora.


[143]

quinta-feira, março 24, 2005

Luís Carlos Patraquim

ELEGIA DO NILO

à Odete e ao Amioto

Azul e branco e o deus crocodilo na margem
Diante das ruínas de Karnak,
como sobes, visto daqui, das águas obscuras
Onde Ogum verteu suas lágrimas e cantou
O sulco vindouro, persistente e duro caminhante
De sul para norte sobre as areias, rasgando a volúvel pele
Dos deuses.

Reis e templos, em tuas margens ordenaram o mundo
Entre cada ciclo solar, suspensos do fim;
E louvo a cidade dos que partiram, o fluxo da pedra
que ainda sustém a geometria do eterno
emergindo da tua indiferença; Tu, que escondes os gatos
imóveis e os sabes para sempre espíritos soltos, eriçados; e te deleitas,
vendo-os na ronda dos desenhos enigmáticos, anichando-os junto aos
Sarcófagos que extrapolam de Ti, como se o teu leito derramado
Tivesse soerguido, da solidão granular, o perfil oblongo
Da cabeça de Nefertiti e Te espojasses na beleza efémera
Dos esponsais da Carne;

Ó matéria perecível que as ânforas guardam, aguardam,
Nós que perdemos o divino selo das libações inaugurais e salmodiamos,
No medo litúrgico da palavra esquecida, o simulacro do Livro
E a salvação dos mortos;
O que sabia deles, extirpadas as vísceras, iluminados pelo ouro e a água
De que eras a substância!

Desceram as noites e o desmundo bebeu nas tuas margens
Enquanto Tu cantavas e era de ti o canto
Moldando a forma, lacerando as cidades e erguendo-as,
Com nossos pés descalços sobre a erva, acocorados
E breves, uma inscrição de sangue diluindo-se
Até ao mar.


[142]

domingo, março 20, 2005

Jall Sinth Hussein

MAR

Imenso e plano como um campo raso
em tuas águas se condena sem julgamento
e só te ouves a ti próprio.

O teu orgulho tem o poder de um deus
que perdeu o encanto que não redime já.


[141]

quinta-feira, março 17, 2005

Jall Sinth Hussein

TANGERINAS EM REDOR DE MINHA VIDA

Tangerinas em redor de minha vida:
geografia antiga
os hábitos frescos a infância como um rio
a mão poisada sobre muros sem tocar
breves as horas
e a leveza de cada tarde
nenhuma cicatriz no corpo
nenhuma solenidade.
Tangerinas como uma lenda até ao dia de hoje
- distância que às vezes ignoro.
Liberdade tão sagrada e tão nobre
como um gesto mudo e pobre.
Moçambique e meu bairro pequeno
aquelas coisas que voltam toda a vida
entre anos e deveres.
Tangerinas em redor dos meus lugares.


[140]

domingo, março 13, 2005

Luís Carlos Patraquim

LIDEMBURGO BLUES (5)

Et pur, magno pórtico onde
neither division nor unity
Matters! Tu, mufana que te atreves,
atira a pedra, rasga
a textura opaca de tanto sangue!
Fere a cicatriz e a dobre, tu
que desceste ao vale dos mortos e sugaste
o osso e encontraste o vazio, batendo-o
na viseira de deus, veste a pele
e não cegues o olho do Leopardo.
Ele espreita os séculos, é quem
vagueia pelos dias e não dorme desde o crepúsculo,
o último que há-de vir
e por onde salta, alma voraz
intumescendo a árvore.


[139]

terça-feira, março 08, 2005

Carlos Gil

UM BAIRRO

Mafalala, oh Mafalala
bairro rico ao metro quadrado,
o maior índice da cidade
de carrinhos em arame moldados

Mafalala, oh Mafalala
onde vivi até aos quinze
- bairro que queriam que eu visse,
o calção limpo,
os olhos fechados

Mafalala, oh Mafalala
bairro de putas e operários…
vendedoras de bazar, mainatos,
tantos caminhos cruzados

Mafalala, oh Mafalala
tantos caminhos para milhares.
Teus becos, meu gelo-doce,
lá despedi a virgindade…

Mafalala, oh Mafalala
onde vivi até aos quinze!
eu de olhos fechados,
tu a ensinares-me a olhar

Mafalala, oh minha Mafalala…


[138]

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Frei Bartolomeu dos Mártires

AS RUÍNAS DERROTADAS

Deve aqui notar-se como de passagem, que as casas, ou edifícios grandes, que se arruinam jamais tornam a levantar-se, e já não são poucos os que se acham por terra, e outros, que nunca se acabaram de edificar pela morte de quem os principiou.


[137]

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Alberto de Lacerda

JÓIAS

Jóias que imensa madrugada
De estrelas na ilha alegre
Do riquechó contemplo as conchas
Celestes a cintilar.

São conchas algas são prodígios
Do mar que os deuses cravejaram
Assimetricamente musicalmente no firmamento.


[136]

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Jall Sinth Hussein

BASMA (72)

Ilha de Muipíti
olho de terra no mar
alheio ao seu corpo


[135]

sábado, fevereiro 19, 2005

Glória de Santana

BAIRRO NEGRO

As pequenas casas maticadas
erguem-se de longe (de séculos, de antigas datas)
contra o mar e as ondas e as algas.

Como remotas conchas embaciadas
caídas de uma súbita maré alta (lúcida e predestinada)
entre o areal e as ondulantes palmas.

As pequenas casas cúbicas e caladas
onde os problemas são primários e as janelas fechadas
e os tectos de macúti...

(Quem sofre dentro das rústicas portas não aplainadas?
Ou se encosta chorando às trémulas arestas
projectadas entre ângulos de acaso?

Que mar indeterminado e abstracto
se reflecte num olhar ou num gesto marcado
por um ignoto hábito?)


[134]

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Luís Carlos Patraquim

EIS AS CASAS

Eis as casas. Grutas de sal a céu onde me descubro. E sou nome ou reboco do dia que se extenua ou sonha, vento marítimo que me leva às praias fulgurantes que faltam nos livros. Aqui me deito, peixe, memória, homem, contigo e a chuva e o iodo e o som das casuarinas circulares, teu verde escuro açoitado de desejo. O bosque.
Aqui me ergo, pendurado em panos às janelas, imagens de despudor sem mim. Porque aqui me esqueço do que me querem. Da história que me fizeram e fui. Olhem estas paredes que respiram! Arfam? Olhem onde não me posso esconder, no laborioso percurso das tardes jogando-me, brincando, obsessivo gerúndio doutra estória às avessas da história, onde não me vissem mais, quando me distraio, viandante de mim nos alvéolos iluminados do tempo.


[133]

domingo, fevereiro 13, 2005

Rui Knopfli

S. PAULO

Povoado de sombras e fantasmas,
é ranger de passos o que escutamos,
ou apenas o estalido que o tempo
arde na madeira ressequida dos sobrados?

Pilhado, sangrado, espoliado
pela voraz cobiça
de sátrapas, clérigos e soldados,
apenas te legaram
a pesada alvenaria rectangular,
treze órbitas vazias com que fitas
a praça, e o mar em frente,
o silêncio húmido que te desce
das soturnas arcadas
e o lenho sepulcral das portas semicerradas
em que escasseiam batentes e puxadores
ou mesmo o metal pobre
de algum mais caprichoso arabesco.

Não só as portas e os muros.
Também as sombras. E os fantasmas.


[132]

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

Frei Bartolomeu dos Mártires

UM CAMINHAR NA CIDADE DE PEDRA E CAL

Na ponta N.E. da ilha está situada a bela e linda cidade de Moçambique servindo-lhe como de coroa a grande e magnífica fortaleza de S. Sebastião, que pela sua celebridade nos merece uma descrição particular (...)
Saindo da dita fortaleza, e passando um pequeno, mas vistoso campo todo limpo plano, e com vistas ao mar pelo sul, e pelo norte aonde a tropa faz as suas evoluções, e exercícios militares; que serve como de passeio público à cidade, e aos mouros de lugar destinado para fazerem amarras, viradores, e cordas de cairo, entra-se na mesma cidade por duas ruas, além de outra que corre junto da praia pela parte do sul. Estende-se a povoação por todo o comprimento da ilha até mais de dois terços da sua extensão, ocupando de mar a mar todo o terreno intermédio. As ditas ruas e outras e outras mais que tem a cidade bem podiam ser tiradas todas em linhas rectas, paralelas, e cortadas igualmente em ângulos rectos, segundo inculca a natureza do terreno; mas infelizmente quase todas são irregulares, tortas sem nenhuma uniformidade. São contudo limpas, e asseadas, planas e algumas das principais argamassadas de tal forma, que causa gosto andar por elas. Há em todas casas nobres e são algumas tão vastas e bem construídas, que podem entrar em competência com os bons palácios das grandes cidades. São as casas e igrejas todas cobertas de terraços, talvez mais pesados e mais fortes que as abóbadas de tijolo: servem-se deles os moradores, não só para os seus divertimentos, e passeios da tarde, mas principalmente para aproveitarem as águas da chuva (únicas que se bebem em toda a cidade) em grandes cisternas, que junto das mesmas casas têm sido construídas.


[131]

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

Jall Sinth Hussein

ILHA DE MOÇAMBIQUE 1972

As ruas desertas cheias de vento
como um deus as paredes enormes do forte assistindo a tudo
a areia longa e lisa e a timidez do mar
a língua perdida como ruínas
na mão o cavalo-marinho e os sonhos
o tempo sem chegada e sem partida

assim haveria de ser mais tarde a minha vida


[130]

sábado, fevereiro 05, 2005

Luís de Camões

OS LUSÍADAS (I, 54)

Esta ilha pequena, que habitamos
É em toda esta terra certa escala
De todos os que as ondas navegamos
De Quíloa, de Mombaça e de Sofala,
E, por ser necessária, procuramos,
Como próprios da terra, de habitá-la;
E, por que tudo enfim vos notifique,
Chama-se a pequena ilha – Moçambique.


[129]

terça-feira, fevereiro 01, 2005

(Canção Popular)

EIS O QUE É BELO NESTE MUNDO

Eis o que é belo neste mundo
Eis o que o homem roga acontecer dia após dia
Nós de Beira-Mar gostamos imenso
A nossa alegria de hoje é incomparável, pela vinda destes
amigos de outros Países
Toda a Ilha hoje está abalar.

Naqueles tempos, tempos que já lá vão,
quando vínhamos do continente
Lumbo, o nosso transporte principal era o paporo.
Ao pisarmos a Ilha, avistávamos primeiramente as estatuetas
das muralhas florindo um brilhante candeeiro
Da Ilha para os vários locais viajávamos de riquixós
Quando o paquete adragava era guiado por um piloto, um
farol que piscava da ponta do Mercado Sancul.


[128]

sábado, janeiro 29, 2005

Rui Knopfli

SEM NADA DE MEU

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem) . Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


[127]

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Luís Carlos Patraquim

MORADAS

O rosto da montanha na sombra do vale,
sua macerada inscrição confundindo as pegadas
de quem, ignoto, nem a memória inscreveu
sobre o vento.

Alguém que olha a ausência
e o mais íntimo sinal, sedosa estrela,
uma quase poeira, a viandante terra,
nómada, entre silêncio e nada.

Uma única mão de luz talonando o tempo.


[126]
Bibliografia essencial: Luís Carlos Patraquim, O Osso Côncavo e Outros Poemas, Caminho

quarta-feira, janeiro 26, 2005

Jall Sinth Hussein

ÍNDICO

Pálida e fria como uma estátua grega
a luz do sol me chama e me habita.
No sul sei que o silêncio passa devagar
por isso me perco no vento que me leva lá.
No sul ouço o dia brotar
e não em outro lugar.


[125]
Bibliografia essencial: Jall Sinth Hussein, Poemas do Índico, Amores Perfeitos.

terça-feira, janeiro 25, 2005

Fonseca Amaral

S’AGAPO

Penélope,
nascida e criada no Alto-Maé,
filha do Kristos da cantina,
neta do Aristóteles da padaria,
vizinha de Karimo o monhé
da esquina,
irmã da helénica Sophia,
vai tecendo
e destecendo
- até ao pôr-do-sol –
tua renda de lençol
- pálida sombra do mito –
enquanto esperas
teu primo Ulisses,
o noivo aflito,
lá do Chibuto,
para as lautas bodas
no Ateneu.

Pois eu,
sem os direitos do grego astuto,
vou gritar no Largo Albasini
- ágora perfeito para tais intentos –
os meus profundos sentimentos
e lamentos.

Que os conheçam
a Polícia
a Milícia
os motoristas
as floristas
os maviques
os caciques
dos buicks
os poetas meus amigos
os colonos, dos antigos,
a casuarina
da esquina
e o cajueiro
do terreiro
- que é quintal
cá para a gente.

Penélope,
vou gritar,
sem cessar,
sem ática contenção,
até enrouquecer
de fazer dó:
S’AGAPO
S’AGAPO
S’AGAPO.


[124]

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Rui Knopfli

VISITAÇÃO (1)

Perfura-me o sono
essa luz estelar, basculante,
puríssimo cristal de lágrimas.
Minha comprida noite desabitada
se enche com a mansa luz dorida
desses olhos irmãos do meu silêncio.
Um pouco de ternura incomensurável
pousa os brandos dedos sobre o meu ombro,
minhas pálpebras, meu sono inquieto
e adoça a nudez fria deste espaço
ora visitado pelo teu rosto querido.
Cerro os olhos de cansaço, na boca
um travo salgado, sabor de mar,
resto de amargura antiga. Ou serão lágrimas
tuas, esse sal vivíssimo, que sinto nos lábios,
como se tivesse beijado os olhos teus tristíssimos?


[123]

sábado, janeiro 15, 2005

Sebastião Alba

O NAVEGADOR

Plena, a cidade
navega o dia. Ao lado,
o mar em que verte.
Passa lentamente,
à sombra, imposta,
do seu meridiano.
Só um vidro faísca:
Há séculos emite
sinais indecifráveis.


[122]

quarta-feira, janeiro 12, 2005

João Paulo Borges Coelho

AS VISITAS DO DR. VALDEZ (excerto II)

Entretanto, lá fora tudo parece funcionar dentro da arrastada normalidade com que sempre funcionou: as figuras públicas dando a sua opinião sobre as coisas aos jornais locais antes de se refugiarem nos clubes a jogar as cartas, por vezes tendo mão (um trio de damas, dois ases), outras sem jogo nenhum; os carpinteiros brancos, com barbas espessas de três dias, passando a caminho da Munhava montados nas suas Florette, nas suas Zundapp, levando atrás, amarradas com tiras de câmaras-de-ar, a caixa das ferramentas e a lancheira cheia se é na neblina fresca da manhã, ou vazia com restos para o gato lá de casa se é no tempo dos fumos e odores vespertinos; os estivadores, em cachos, carregando sacas de serapilheira e vestidos de serapilheira depois de terem dormido em lençóis de serapilheira e comido uma shima cheirando a vapor e a serapilheira, espalhando-se pelo cais como um mar negro e agitado; os médicos dando consultas caras todos os dias, baratas uma vez por semana, receitando misteriosas mensagens em código que só a infinita sabedoria dos farmacêuticos sabe ler, antes de fecharem os consultórios para ir espairecer com as esposas à matiné das cinco; os pescadores saindo para o mar de mãos vazias e voltando ao fim do dia com algum peixe ou quase sem peixe nenhum; as raparigas da Boite Primavera, Zamina, Minita, Irene e Erleny, como outras tantas que vieram antes ou ainda outras que virão depois, passeando-se lentas pela baixa atrás das suas boquilhas e espremidas nos seus hot-pants, dando troco aos marinheiros para que não pensem que os seus piropos ficam sem resposta, antes de recolherem ao redil para enfim se prepararem para os trabalhos da noite; as meninas do Liceu Pêro de Anaia, com longos cabelos castanhos, despertando púberes instintos nos candidatos a namorados e fumando às escondidas dos pais e dos amigos dos pais; o cauteleiro arrastando-se por entre as mesas do café sem pedir licença, alardeando as suas roucas promessas; o monhé da loja coçando os pés atrás do balcão, indiferente aos clientes que lhe esquadrinham a mercadoria, uns para comprar e outros só para ver; os chineses passando as suas couves em pequenas carrinhas rastejantes e exangues, ou vendendo com modos suaves e educados os seus pijamas e camisas de casca-de-ovo, e as suas chávenas de louça fina como pele, com carantonhas no fundo olhando-nos quando bebemos, e nós bebndo sofregamente para salvar das profundezas daquele minúsculo mar esses estranhos afogados; os empregados da câmara municipal fazendo interrupções ao expediente da manhã, imunes ao calor na protecção das suas camisas brancas de casca-de-ovo compradas no Ping Ta e com os bolsos cheios de esferográficas, circulando a caminho do bazar; os contínuos caminhando nas suas estranhas e contraditórias fardas de caqui, a metade de cima um camisa à militar, a de baixo uns calções inocentes como se fossem de criança; os criados batendo tapetes nos quintais, levantando nuvens de poeira; as crianças negras chapinhando em minúsculas lagoas de água da chuva se é depois da chuva, ou na lama quase seca se é dia de sol, com as suas barrigas redondas e os olhos irradiando uma alegria inventada a partir de motivo nenhum; as crianças brancas irradiando essa mesma alegria, chapinhando na praia do Clube Náutico, nas poças de água do mar; os jovens rebeldes do Oceana fumando suruma para inventar outra cidade tão encalhada e viva quanto esta; os corvos negros de peitilho branco passeado-se lentamente pela Praia do Veleiro, crocitando nos ramos das casuarinas com voz idêntica à do cauteleiro vendedor de promessas nos cafés; os barcos imensos e descarnados, presos no areal, soltando esquírolas de ferrugem, lágrimas ferrugentas da dor que é a humilhação de acabar daquela maneira, longe das profundezas; os rodesianos cor-de-rosa e sardentos chegando em revoada com as suas filhas belíssimas muito brancas para comer camarões e beber cerveja, e em revoada partindo; os arquitectos fazendo casas modernas para terem onde morar, e os pobres casas de lata e capim para terem onde sofrer, a cada qual o seu telhado; os cozinheiros cozinhando souflés e gigantescos mariscos cor-de-rosa como o gigantesco John Dale se é de dia, as suas mulheres shima com camarões magros e secos como Ganda se é de noite, para enfim todos terem o que comer, cada qual à sua mesa; a bicicleta branca dos ice-creams passando a tilintar, anunciando os cones pontiagudos se é Esquimó, de fundo chato se é Alasca, e Vicente correndo atrás dela com as moedas na mão para trazer um sorvete de chocolate, secreto capricho de Sá Caetana; o pão que os padeiros cozem de madrugada espalhando o seu cheiro bom e universal sobre a cidade, igual para toda a gente, amolecendo no chá dos pobres a sua integridade ou deixando derramar sobre as suas fatias um cacho de ovas de caviar importado; as mulheres dos oficiais escrevendo romances melancólicos como murmúrios que as entretenham da angústia da espera; os padres conspirando nas suas inócuas capelas, na falta de alguém mais adequado para o fazer; os soldados chegando e partindo com as mãos cheias de sangue e os olhos de pavor; os combatentes no mato, diz-se em surdina, fazendo fogueiras e conspirando; os pides, atrás dos óculos negros, tomando cafés no Café Capri, vestidos com camisas brancas de casca-de-ovo dos chineses e fingindo estar de folga mas na verdade trabalhando; o mangal secando, mal-grado o desespero dos minúsculos caranguejos; o mar paciente e obstinado engolindo lentamente a terra na Praia dos Pinheiros e no Macúti, em todos os lugares; as marés cheias e vazias dando a cada uma o seu lugar, mas cada vez as marés cheias sendo mais cheias; e os dias de sol sucedendo-se uns aos outros, com dias cinzentos e chuvosos pelo meio.


[121]

sábado, janeiro 08, 2005

MATAPA SABOROSA

½ kg de folhas de mandioca
6 dentes de alho
4 malaguetas
1 colher de chá de sal
1 chávena de camarão seco e sem as cabeças
2 cocos
1 chávena de farinha de amendoim


Escolhem-se as folhas mais tenrinhas, lavam-se e pisam-se, com alho e malagueta num pilão ou na máquina. Põem-se numa panela a cozer sem água e um pouco sal. Depois de secar a água natural deita-se o camarão seco pilado, e em seguida o leite de coco e deixa-se ferver. Por fim, deita-se a farinha de amendoim e deixa-se apurar durante uma hora.As folhas de mandioca podem ser substituídas por folhas de couve. Se desejar confeccionar matapa à moda makua substitua o amendoim pela castanha de caju.

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Links importantes:
O site Macua de Moçambique, e principalmente a sua biblioteca, à sombra de cujos palmares este blog se irá sentar.
A livraria Mabooki (Livros e Mais), especializada em temas africanos.

terça-feira, janeiro 04, 2005

Rui Knopfli

A PEDRA NO CAMINHO

Toma essa pedra em tua mão,
toma esse poliedro imperfeito,
duro e poeirento. Aperta em
tua mão esse objecto frio,
redondo aqui, acolá acerado.
redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito
bruto. Uma pedra, uma arma
em tua mão. Uma coisa inócua,
todavia poderosa, tensa,
em sua coesão molecular,
em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida
ensolarada, tu és um homem
um pouco diferente. Ao meio-dia
na avenida tu és um homem
segurando uma pedra. Segurando-a
com amor e raiva.


[120]