segunda-feira, dezembro 29, 2003

Rui Knopfli

RETORNO

Nous reviendrons dans nos enfants.

Subo um passeio branco alastrado de sombra,
luz e folhas caídas.
Pela mão vai minha filha,
juntos subimos rente ao fim
da tarde.
Apertando-me os dedos, olhos nos olhos,
minha filha faz-me as perguntas de todas
as crianças.
Seus olhos espelham os meus
e na boquita fresca vagueia o sorriso
que outrora perdi.
Absorto, caminho rumo ao fim do tempo,
ela, rumo ao princípio.
O meu poente roxo é a sua alvorada
estridente.
Termino um pouco onde ela começa,
mas minhas mãos continuam nas suas.
Penso agora na morte sem angústia
e na vida com outro empenho.
Minha filha vai comigo, seus olhos,
seus gestos, seu sorriso,
lembrança de mim.
Vou partindo. Ela apenas chega.
A tarde cai e não é triste morrendo.


[53]

sábado, dezembro 27, 2003

Noémia de Sousa

PORQUÊ

Por que é que as acácias de repente
floriram flores de sangue?
Por que é que as noites já não são calmas e doces,
por que são agora carregadas de electricidade
e longas, longas?
Ah, por que é que os negros já não gemem,
noite fora,
Por que é que os negros gritam,
gritam à luz do dia?


[52]

quarta-feira, dezembro 24, 2003

Nuno Bermudes

NATAL EM ÁFRICA

«Natal... Na província neva»
- Fernando Pessoa

Como no longe
europeu,
Natal -
mas na província não neva,
nem arde o fogo
nas lareiras,
nem a estrela dos Reis Magos
brilha neste céu.

Idênticos,
Só mesmo a solidão
e o cansaço.

- E toda a esperança,
como nas terras onde neva,
se perdeu.


[51]

domingo, dezembro 21, 2003

Noémia de Sousa

A MULHER QUE RI À VIDA E À MORTE

Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam.

Breve, muito breve
tomarei o meu lugar entre os antepassados

À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil
as unhas córneas de todos os labores
este invólucro sulcado pela aranha dos dias

Enquanto não falo com a voz do nyanga
cada aurora é uma vitória
saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo

Oyo, oyo, vida!
Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam


[50]

sexta-feira, dezembro 19, 2003

Noémia de Sousa

A BILLIE HOLIDAY, CANTORA

Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.

E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada nascida da própria escuridão...
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.

E começava assim a canção:
“Into each heart some rain must fall...”
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria...

Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,
descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares “blues”, dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei porque estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão...

No quarto às escuras, eu já não estava só!
Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos...
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória...
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso...

O meu povo transportando para a música, para a poesia,
os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação...

Billie Holiday, minha irmã americana,
continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os “blues” eternos do nosso povo desgraçado...
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,

e se volte enfim para nós,
mas com olhos de fraternidade e compreensão!


[49]

segunda-feira, dezembro 15, 2003

José Craveirinha

BOATO DO VELHO USSENE

Esposa e filhos do velho Ussene
são genuinos espíritos
de fábula.

Por agora o boato apenas põe o velho Ussene
refém-camionista sequestrado
no meio da mata.

Ou
falsa africanitude ou pura africanice
enquanto este feitiço não souber
onde está ou não está o velho Ussene
Mas quando?
A mulher e os filhos vão magicando
a boa nova do velho Ussene
mãos no volante
a saltar dos boatos
e a chegar a casa.


[48]

sexta-feira, dezembro 12, 2003

João Dias

GODIDO

"Era um vêgi um dia. Barranco chigou no nosso terra. Parota, tinha degi. E patrrão ficou falar assi": - "Agora machamba não é de prreto."
"Brranco ficou no terra."
O senhor Manuel Costa veio à povoação e assentou seus projectos ao lado dos negros. Trazia máquinas, autoridade, réguas. Espalhou dinheiro e panos de fantasia pelas gentes, trazendo à sua quinta os braços do sector. Trabalhar para o senhor Costa era mais seguro porque se abrigavam dos maus tempos que destroem os cultivos. Os brancos até lutam vantajosamente contra a Natureza.
Os pretos dividiam-se em dois grupos: os das pequenas machambas independentes e os empregados da quinta. Os primeiros , sentindo o peso dos impostos, vendiam seus produtos ao caseiro. De modo que uns subordinados directamente e outros conscientes de uma liberdade que não tinham, todos viviam para o grande proprietário.
Quatro meses andados, no lugar o senhor Costa se tornou um verdadeiro soba. Até fazia de juiz entre os indígenas.
Grandes camiões paravam ali. Os armazéns falavam de tudo que se produzia e os carros afastavam-se de pneus em baixo, pingando amendoins ou feijões que sacos rotos não seguravam. Aquela carga descongestionava os armazéns e ia espalhar libras no senhor Costa.
Os produtos seguiam para grandes cidades. Na aldeia, a fome.
"Di modo qui os prreto trabaia, e, às vêzi, fica fome no barriga dele. Não te comida para o gente."
Um feiticeiro disse uma vez que a fome que começava nascendo era uma praga dos antepassados. Que andava um anjo mau na povoação. "Dá mim 20 cábêça ha-di matar este chatice qui te no terra." Mas os negros supersticiosos desconfiaram do que se lhe dizia e seguraram suas cabeças de gado.
O branco, raivando riso, empurrou para longe o negro ladrão.
Os indígenas viram depois uma sombra e quiseram bater no feiticeiro que deitava pesos em seus pensamentos.
De manhã, ainda a claridade rasgava farrapos de escuridão, um sino chamava às charruas e colheitas. Carlota trabalhou enquanto se lhe enchia o ventre.
Certo dia sentiu náuseas, voltou à palhota. Descontaram-lhe horas de trabalho.
A barriga rompeu e vazou. O senhor Costa espiou.
- Azar! Se fosse mulher, a mão-de-obra...
Mas não havia dúvidas. Nem a barba lhe faltaria ao crescer. Homem com todas as características. Na idade, havia de distrair as tombazanas da faina diária, rebolar por elas na mata. E as horas de sexo quem as perdia em trabalho era ele, caseiro, que não tinha olhos em todos os cantos simultaneamente.
Carlota continuou entre o quarto do senhor Costa e os negros da palhota. Entre eles, Godido germinou sem cinismos a roer até aos dedos a mandioca que a mãe lhe dava pelo dia.
A vida fazia-se fábrica de descasque: os homens entravam, descascavam-se e saíam farelo para estrumeira. Na máquina ficava suor. Amadureciam os campos, desfazia-se a vida em adubo. Não se pintavam novas cores no cenário; era aquele o método único, com mais ou menos pormenores.
"Escola pra preto num tinha. Branco estava a falar cos pretos é só pra cavari, cavari ni chão."
Mamana Carlota lembrou que tinham passado tantos anos quantos os dedos das mãos e de um pé, depois que Godido nascera. Cercavam-no olhos brancos de cobiça do senhor Costa, gulavam-lhe charruas e sementeiras no campo. Mãe-negra desgastara-se naquilo; sabia os trabalhos dos que nem corpo haviam para a sexualidade do senhor Costa.
Godido precisava outros rumos.
A vida realiza-se sempre certa onde quer que seja, mas nós não somos suficientemente fortes para o compreender e executar.
O negro olhou-se entre campos e montes, a alma sangrando lágrimas aos cantos dos olhos. "Patarrão não esconfiou eu estava fugir." A mãe ficara a mentir um inesperado desaparecimento como se esquecesse aquelas últimas palavras ditas ao filho, que a vida estava um bocado além da mandioca e do chicote. Mas havia de dizer ao senhor Costa: - "Minha Godido ficou maluco; fugiu... fugiu do soroviço. Dêxou patrão, dêxou mãe. Maluco!"
Godido mediu a falta de uma voz de mãe onde apoiar as acções, uma voz de mãe a cansar-lhe os ouvidos: "Num fagi isso!, Godido vênha aqui."
A estrada parecia doida no seu andar, atirando-se da colina ao vale quantas vezes com brusquidão. Morava em baixo uma respiração de grades. Vazio de casas e homens. A falar-nos da vida humana só estrada. Despropositadamente, raríssimos quase-pastores irmanados a elas. Ninguém acredita que sejam homens. Mantém-se que ali só estiveram os construtores da estrada, e viajantes.
Godido deu um passo menos seguro e pestanejou. Lembrara-se que podia passar alguém por ele. Com mil diabos!
- "Mim vai no cidade viver co brancos", diria a seus patrícios.
Complicavam-se as coisas se passasse por um branco. E neste pensamento falhou-lhe o coração e sentiu um frio nos pés. Que ia em serviço, haviam de dizer.
A cidade agora começou a assustá-lo. Tinha medo. Era terra dos brancos. Os brancos eram como o senhor Costa. A cidade eram muitos senhores Costas. A paisagem à volta despiu-se e o caminho entrou de oscilar num "Vou? Não vou?"
Os negros lá deviam ficar sufocados. O seu caminho era para trás, na senzala. Que se não metesse em cavalarias altas.
Mas a quinta dava-lhe náuseas e um caminho novo pedia ser pisado. "Os branco di cidade não fagi mal. Ni mato já mi chatia catinga de mamana, e paiota do gente co chuva no cama."
Vertigens de novo, esperavam-no. Os pretos não estariam mais puxando carroças, como na quinta. O chão e o céu perderiam areia e azul e tudo seria oiro como o Sol. Ná! Aquele cheiro a suor da mãe e a senhor Costa enjoavam.
A imagem do burgo deu-lhe sonho e medo alternados. A estrada ora escorregava gulosa, ora oscilava em vontades de palhota.
Ao longe pinceladas amarelo-avermelhadas davam cidade. Era como que o limiar de outra existência mais real para Godido. - "Hih! Tão bom! Olhó o cidade." O ambiente ter-se-ia rido do seu estado de alma se o soubesse.
Como se não fosse humano um negro pensar que a "vida do negro há-de acabar."


[47]

quinta-feira, dezembro 11, 2003

Bibliografia essencial: José Craveirinha, Babalaze das Hienas, Associação de Escritores Moçambicanos

segunda-feira, dezembro 08, 2003

Mia Couto

POEMA MESTIÇO

escrevo mediterrâneo
na serena voz do Índico

sangro norte
em coração do sul

na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo

hei-de
começar mais tarde

por ora
sou a pegada
do passo por acontecer


[46]

sábado, dezembro 06, 2003

Rui Knopfli

O CAMPO

Saio para o campo. O campo
aqui não é o campo, mas a savana
eriçada de micaias e capim
feio e desigual. Habitantes
do seu mundo, os negros ignoram-me,
empenhados em suas tarefas quotidianas.
Olho para as coisas abandonadas,
latas escuras de ferrugem, lonas
pardas de pneus, ferros
retorcidos sem jeito. Entre isso
o capim espreita, descolorido, espigado
e hirsuto. Nada me sugere a face
aveludada de uma paisagem pastoril,
rosto tranquilo de criança sonhando.
Mas eles estão no seu mundo,
e eu passeio no campo.


[45]
Alberto de Lacerda

L'ISLE JOYEUSE

Ó festa de luz de mar tranquilo
De casas brancas de um branco rosa

Dum tempo antigo que aqui ficou

Ó ilha pura incandescente
Que me geraste três vezes mãe
Três vezes por mim sagrada
Por teres deuses tão variados
Por seres livre da liberdade
Que os gregos deuses orientais
Marcam a fogo um fogo alegre
Naqueles seres naquelas ilhas
Que eles nomeiam seus próprios filhos
Por motivos sobrenaturais


[44]

sexta-feira, dezembro 05, 2003

Bibliografia essencial: A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas, compilação de Nelson Saúte e António Sopa, edições 70

segunda-feira, dezembro 01, 2003

Mia Couto

O PRIMEIRO ASTRONAUTA

O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhamposse

Só ele
teria sacudido os pés
à entrada da Lua

Só ele
teria pedido
com suave delicadeza:
- dá licença?


[43]
Bibliografia essencial: Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Caminho

sábado, novembro 29, 2003

Sebastião Alba

ÍCARO

Da Mafalala estorva-nos
a memória dos gregos
É um anjo negro segredado
e assim goza
de asas sussurrantes
Desce por entre
intervalos do vento
e findo o voo refunde
o modelo de cera
Como qualquer pássaro faz ninho
ele no vestido das mulheres
Sem céu fixo
exala a plumagem
da comum nudez interrompida.


[42]

quarta-feira, novembro 26, 2003

Eugénio Lisboa

ORIGEM

Ao Sebastião Alba

Regresso ao passado espesso
Tecido incestuosos vário sujo
Magna de ódio embebido em gesso
Rápidos pavores de que fujo
Ó húmida tentação horizontal
Cave podre e quente latejante
Onde menina sedução mineral
Viva palpo aliso quase ofegante
A vida a violência o sangue o sal
Incrível solo de augusta criação
O leite o mar a mão o sexo
O amor o riso e a traição
Os livros e a pureza ó quase nexo
Ó embruxado, aquecido caldo
Turva sopa inquieta mátria
Em ti me aqueço grito escaldo
Noiva do negro cru espasmo-pátria!
Tempo turvo incerto fino rubro
Metálico fogo ruivo trampolim
Horizontal finura que recubro
Ó mãe irmã uva de cetim!
Tempo antigo de impura surdina
tudo era ali calor de incerteza
Risco cerco sugestão de mina
Súbito esperma surto da represa.
O estupro a morte o oleoso sangue
O mar que tudo lava a memória
O ódio a agonia o corpo exangue
Do negro rebentado – única vitória!
Infância plasma leite de origem
Noite descoberta febre violenta
Profanação antiga ó mãe vertigem
Noite confusa vigília peçonhenta.
Sabor antigo e brusco a caju
Pecado de limão ao fim do dia.
Histórias de mamba e de surucucu
Alçado gozo de fruto e agonia.


[41]

segunda-feira, novembro 24, 2003

Bibliografia essencial: Sebastião Alba, Albas, Quasi

quarta-feira, novembro 19, 2003

José Craveirinha

ÁFRICA

Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturada com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rols-Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.
Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.

E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de «strip-tease» e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíza
um filme de heróis de carabina a vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das suas balas e dos seus gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.

Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
em rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas de chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens inventaram
a confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre os ninhos mornos de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do pasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extinguiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinita côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo no Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meus povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o Eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a tácita harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.


[40]
José Craveirinha

GRITO NEGRO

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu Irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!


[39]
José Craveirinha

XIGUBO

(Para Claude Coufon)

Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!

Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.

Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
brilham alucinados de vermelho
os olhos dos homens e brilha ainda
mais o fio azul do aço das catanas.

Dum-dum!
Tantã!
E negro Maiela
músculos tensos na azagaia rubra
salta o fogo da fogueira amarela
e dança as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.

E a noite desflorada
abre o sexo ao orgasmo do tambor
e a planície arde todas as luas cheias
no feitiço viril da insuperstição das catanas.

Tantã!
E os negros dançam ao ritmo da Lua Nova
rangem os dentes na volúpia do xigubo
e provam o aço ardente das catanas ferozes
na carne sangrenta da micaia grande.

E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio.


[38]
Bibliografia essencial: José Craveirinha, Xigubo, Edições 70

sexta-feira, novembro 14, 2003

Rui Knopfli

KAAP DIE GOEIE HOOP

Verdes vinhas de entre dois oceanos,
na lança antártica da rosa-dos-ventos,
ao limite extremo do Cabo Fim.
Luxuriento, o leito azul do Mostrengo

adormecido, ásperas, duras falésias
e abismos, fractura de altos sonhos
imperiais. Na lívida sepultura
da areia, perdido o Setestrelo,

o cego navegante deitou sortes
à Ventura relutante. Na escuma
do Tempo, oxidado e estrangeiro,

o timbre da voz remanescente. Erecta
lápide roída de sal e de remorso,
na bruma. Só o Padrão é português.


[37]
Rui Knopfli

BALDIO

O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras aos galagalas
e salta sobre as velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra de meus olhos.


[36]

quinta-feira, novembro 13, 2003

Rui Knopfli

NO CREMATÓRIO BANEANE

Brahman e Atman, eis dois nomes apontando
à mesma verdade, porque outro e um
a mesma coisa são. A Verdade Universal
no primeiro, no segundo a que cada um
de nós transporta dentro de si. Às duas
designa-as Om, o Sim Total, a Verdade
Derradeira. Saibam lê-las no crepitar

da lenha, aqui neste instante
e neste último envergonhado reduto
que nos coube, precária ponta escorada
sobre o acerado resvaladiço da rocha.
Hirto no topo da pira, ungido de essências
e grinaldas, o despojo apenas se descobre
à férrea impassibilidade de S. Lourenço.

Nachiketas, o jovem, repete a pergunta
milenar: «Na morte de um homem
dizem uns, ele é e outros, ele não é.
Onde está a verdade?» «Atman, o Ser,
nunca nasce e morre nunca». Por réplica
da branca ara para o alto sobe
alta coluna de grosso fumo vertical.

Tat tvam asi. Satyam jayate.


[35]

domingo, novembro 09, 2003

José Craveirinha

O BULE E O BLUE

Seu
bule na mão
encho a chávena de chá.

Provo um gole.
Ergo-me quase ao tecto
um anjo doirado em ritmo blue
a teclar piano num arco-íris do Céu.

Oh! Bessie Smith, oh! Bessie Smith!

Era aquele o bule
do chá que Maria tomava.

Oh! Ponho-me blue na voz
de Bessie Smith, oh! ponho-me blue
na voz de Bessie Smith!

Fulgentes asas de andorinhas batem palmas
oh! Batem palmas os blues das andorinhas...

Oh! Bessie Smith, oh! Bessie Smith!

Sou um anjo doirado bamboleando blue
blue
blue
Oh! Bessie Smith, oh! Bessie Smith!

Era aquele o bule
do chá que a Maria tomava
como quem escuta um blue.

Mais um gole ó Zé mais um gole de chá
mais um gole para seres um anjo blue bamboleando
nas teclas do piano de arco-íris de Céu
lá onde Maria vive o Éden merecido.

Oh! Bessie Smith!
Oh! Bessie Smith!

O mundo está blue
blue
blue!


[34]
Bibliografia essencial: José Craveirinha, Maria, Caminho
Bibliografia essencial: Fátima Monteiro, O País dos Outros - A Poesia de Rui Knopfli, INCM

quinta-feira, novembro 06, 2003

Sebastião Alba

MAIS DO QUE DO OUTRO

Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mundo de desencontros marcados «slogans» que violam
os espaços aéreos de países castos
e se dissipam além dos limites naturais
um laivo incendiando as espirais do rasto
Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mas de uma província de incerta geologia
com uma história sem crónicas ou reis absolutos
a única a que a constituição se refere numa clave de sol
onde os cidadãos de todos os burgos
pulam à rua das mãos estendidas de deus
dessa nenhuma anexação polui a virgindade civil.


[33]

quarta-feira, novembro 05, 2003

Grabato Dias

AS QVYBYRYCAS
(canto nove - fragmento)

DCCCXCV

Anda o homem por fora do milhor
que dentro tem, e muito se consume
sem lograr conhecer o peixe amor
que o navega solene. Ó cardume
nos fundos do inaudito refrescor
gerador do sagrado e vivo lume...
O homem se ignora, e nós, como homes
não sabemos o quê das nossas fomes.

DCCCXCVI

Se cégos buscássemos na treva
a luz que competia... se a candeia
interior ao tutano e a toda a seiva
acendesse por mágica ideia...
se, já que cégos, de bordão e greva
juntos abandonássemos a aldeia
deste quieto nada... por juntados
veríamos menores nossos cuidados.

DCCCXCVII
Assim que outro sentido tem a vida
senão ser esperar morte todo o tempo?
Sempre a vida se adia, por comprida
e por pensarmos que amanhã é tempo
de preparar farnel para a partida.
(...)


[32]
Bibliografia essencial: João Pedro Grabato Dias, As Quibíricas, Edições Afrontamento

quinta-feira, outubro 30, 2003

Mutimati Barnabé João

EU, O POVO

Eu, o Povo
Conheço a força da terra que rebenta a granada do grão
Fiz desta força um amigo fiel.

O vento sopra com força
A água corre com força
O fogo arde com força

Nos meus braços que vão crescer vou estender panos de vela
Para agarrar o vento e levar a força do vento à Produção.
As minhas mãos vão crescer até fazerem pás de roda
Para agarrar a força da água e pô-la na Produção.
Os meus pulmões vão crescer soprando na forja do coração
Para agarrar a força do fogo na Produção.

Eu, o Povo
Vou aprender a lutar do lado da Natureza
Vou ser camarada de armas dos quatro elementos.
A tática colonialista é deixar o Povo ao natural
Fazendo do Povo um inimigo da Natureza.

Eu, o Povo Moçambicano
Vou conhecer as minhas Grandes Forças todas.


[31]

sexta-feira, outubro 24, 2003

Fonseca Amaral

PENITÊNCIA

Vou expor-me a um Vento
Vou expor-me a uma Chuva
Sem um lamento.

Vou expor-me a uma Chuva
Para te lavar, ó corpo vil,
Para te livrar da densa bruma
Que sinto dentro em ti
Tão dentro, tão dentro
Que é quase fora de ti.

Vou expor-me a um Vento,
Para tu, Alma, voares bem longe
E só voltares
Depois de o corpo expurgado
Clamar por ti.


(Colaboração: Licuari)

[30]

quarta-feira, outubro 22, 2003

Eugénio Lisboa

NO TEMPO EM QUE, FERNANDO

Ao José Craveirinha

Era terra de sol e alegria,
de húmida, vegetal espessura:
ali a minha voz acontecia,
com o ritmo do sangue e da negrura.

Agora, a neve branca cobre a estrada,
com seu manto de noite e solidão.
Já, se o círculo traço, não há nada,
se não fora gelada vibração.

Era terra de ouro fecundada,
força macha, leal, apetecida.
Era chuva, magia visitada,
era sal, sugestão de força ardida.

Agora é só o branco que faz mal
ao filho cujo sal já emigrou.
A vida, agora, é lisa, mineral,
o coração, gelado, sossegou.


[29]
Bibliografia essencial: Eugénio Lisboa, Matéria Intensa, Instituto Camões

sexta-feira, outubro 17, 2003

Rui Knopfli

PONTA DA ILHA

Nem o solo em que assenta o estuque
de nossos casebres foi poupado.
Olhai em redor e podeis vê-lo
convertido na sólida pedra de vossos bastiões,
nos opulentos muros da máquina de guerra
que, pacientemente, fostes erguendo
por nosso trabalho, suor e amargura.
Daqui mal lobrigamos o mar.
Sentimo-lo apenas no odor e na viração
que tremula ao topo das palmeiras.
Perfazem o horizonte raso deste microcosmos
em que a fome, apesar de tudo, sorri.
telhados de macute que se repetem
sempre iguais, ruelas de terra batida
entrelaçadas em labirinto rústico,
o peixe, sobre a teia de lacalaca,
curtindo ao sol de um longo meio dia,
as crianças que brincam seminuas
na poeira cinza, o cão esquelético
preguiçando à sombra e a galinha
tonta que cisca na distância.
À nossa volta sobram os templos e os deuses.


[28]

domingo, outubro 12, 2003

Orlando Mendes

RIGOR

Quando passa e aí devotamente se demora
o erudito na volúpia dos contornos subtis
para televisionar durante uma hora
o que se pratica e mais o que se diz
não pense que dispensamos o rigor da geometria
e da linguagem que nos faz a fala.
Sabemos como se desenha e pronuncia
cada sílaba de palavra nova
porque o escrúpulo gramatical é a verdade que o prova
assim um corpo no amor outro possui e dá-se
e a mulher pariu um filho e o embala.
Sim usamos régua, esquadro e compasso
e o vocábulo e a sintaxe
para medir a minúcia de cada traço
e formar o sentido exacto de cada frase
não leccionados. E se for preciso que se arrase
o antigamente caiado e agora decrépito muro
onde mão privilegiada escreveu
em nome da metrópole cerebral
«decreto: quem sabe e dita sou.»
Hoje temos o mar e o nosso próprio sal.


[27]
Bibliografia essencial: Orlando Mendes, Lume Florindo na Forja, edições 70

quarta-feira, outubro 08, 2003

Rui de Noronha

GRITO DE ALMA

Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
Repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva arrasta
Inteiras gerações de amaldiçoada grei.

Ir procurar, amor, nessa altivez madrasta,
Um gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, duma crueza vasta,
Quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!

Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe
Na fulgurante luz do teu olhar tão doce
À mágoa minha eterna, a minha eterna dor.

Vai. Segue o teu destino. A onda quer-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho da tua raça
Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor ...


[26]

domingo, outubro 05, 2003

Bibliografia essencial: As Mãos dos Pretos - Antologia do Conto Moçambicano, Organização e Prefácio de Nelson Saúte, Publicações Dom Quixote

quarta-feira, outubro 01, 2003

Glória de Santana

DIA AFRICANO

Os corvos marcam
trajectórias largas pelo dia branco,
por sobre a cabeça
dos negros cantando.

Há vento disperso,
rasgando nas folhas das árvores altas,
melodias lentas
de antigas desgraças.

E restos de luz
de um sol sugerido por neves quietas,
caem dos telhados
e batem nas pedras.

Tudo hoje é denso
como uma gravura de atitude rítmica,
pousada nos vidros
cortada da Bíblia.


[25]
Link importante: Artes & Letras de Moçambique

quarta-feira, setembro 17, 2003

José Craveirinha

QUERO SER TAMBOR

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!


[24]

terça-feira, setembro 16, 2003

Luís Bernardo Honwana

AS MÃOS DOS PRETOS

Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agoraé ver-me a não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa.
O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse-me que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
“Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e decidiram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!”.
Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Vírginia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas.
Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos disso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela me disse foi mais ou menos isto:
“Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos”.
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.


[23]

Bibliografia essencial: Luís Bernardo Honwana, Nós Matámos O Cão Tinhoso, Afrontamento

segunda-feira, setembro 15, 2003

Alberto de Lacerda

REGRESSO

Não vim à procura de nada
Nem de saudades que não tenho
Nem de carga do tempo perdido
Nem de conflitos sobrenaturais
Do tempo e do espaço

Amei desde criança
Certas coisas que não choro
Fui a pureza deslumbrada que não volta jamais
O vidro sem ranhura que o sol atravessa
A pureza
Que me deixou feridas imortais

Vim para ver
Para ver de novo
Para contemplar sem perguntas
Não vim à procura de nada
Não me perguntem por nada
Um rio não se interroga
O vento não se arrepende


[22]

terça-feira, setembro 02, 2003

Rui Knopfli

CARTA PARA UM AMOR

Cidade!,
nunca fui mais longe do que
à raia de Espanha.
Creio amar Paris,
conheço Paris dos filmes, a Concórdia
dos postais, a Torre Eiffel divulgada,
Hitler passando sob o Arco do Triunfo.
Amo Paris em Aragon e Eluard,
Paris dos pintores, Paris de Erenburgo.
Amo outras cidades, todas as grandes
cidades.
Madrid dos espanhóis e do coração despedaçado,
Stalinegrado das batalhas, Berlim do triunfo.
Nunca fui às grandes cidades,
amo-as porque os homens mas ensinaram
a amar.
Conheço Lisboa grande e colorida,
longe dos meus sentidos
e Johannesburg do ouro e do pó.
Nunca fui a New York ou São Paulo
do Brasil.
Chicago, Los Angeles, Londres,
Moscou, Rio, não conheço,
não conheço as grandes cidades,
que as há,
do estado de Massachusetts
ou da beira do Nilo.

Cidade!,
amo em retórica discursiva
as outras cidades.
Das viagens que tenho feito,
por rotas tão diferentes,
és sempre a meta, cidade que amo
desde sempre,
- para lá dos poetas, dos pintores,
dos filmes e da retórica discursiva.
Os nossos companheiros tiveram
a coragem de partir,
vivem nas grandes cidades, com história,
do mundo,
eu fui covarde e fiquei.
Experimentei, e não soube, viver longe de ti
noutras cidades.
Sei que este meu amor é a minha mediocridade
também,
a mediocridade de quem não teve asas
para subir mais alto
e orgulho, o orgulho que nada venceu,
nem o ser estranho na própria terra.
É uma ternura que escorre
das tuas tranquilas avenidas de acácias
e jacarandás,
dos claros prédios,
da população colorida,
da mansitude da baía,
do teu ar de provinciana janota.
Cidade, menina fútil
de pouca história,
carros pequenos nas ruas,
velas na baía, patinadores nos ringues,
terra de sete estuários,
de cinemas e cafés buliçosos,
de alegrias e pequenas traições,
leviana, ingénua, snob, bonita,
mulata, branca,
hindu, negra,
de cabelos louros e olhos amendoados,
morena sensual,
terra índica, minha terra,
minha amada inocente, prostituída.

Amo-te cidade da infância,
com girassóis e casa de madeira e zinco
a dormir na neblina da memória.
As quadrilhas de arco, flecha e pistola
de fulminantes,
os esconderijos da barreira,
o sexo e as coxas morenas de Xila,
a Sete de Março da política e dos antigos cafés,
a tristeza verde-negra do Enes,
o paço do senhor bispo
e S. Navio todos os meses.

Quebrou-se esse velho espanto
e nossos companheiros
tiveram a coragem
de partir para outras cidades,
com história, do mundo
(Para eles tua lembrança é
fugitiva mágoa).
Só,
eu fiquei abraçado a este amor anónimo.


[21]

quinta-feira, agosto 21, 2003

José Craveirinha

MENUS

Leves
e frescas
camisas à sport
voltam a gozar o lazer
das cidades.

Entretanto aquelas tristonhas titias
aqueles macambúzios vovós-ninguéns
e aqueles mamparras mufaninhos
na cinegética rural
constam crus
em suculentos
menus das feras.


[20]

(Babalaze das Hienas)

terça-feira, agosto 19, 2003

José Craveirinha

MOÇAMBIQUICIDA

Das incursões bem sucedidas aos povoados
sobressaem na paisagem as patrícias
sacarinas capulanas de fumaça
e uma fervura de cinco
tabuadas e uns onze
- ou talvez só dez -
cadernos e um giz
espólio das escolas destruídas.


Sobrevivos moçambiquicidas
imolam-se mesclados
no infuturo.


[19]

_
Graças ao site Poesia de Autores Africanos, podem aqui aparecer poemas do último livro publicado (em vida) por José Craveirinha, Babalaze das Hienas (Maputo, 1997)
Link importante: Poesia de Autores Africanos.

Há um lugar reservado à sombra dos palmares para alguém que queira colaborar neste blog. Contacto: asombradospalmares@hotmail.com

sábado, agosto 09, 2003

Noémia de Sousa

POEMA DA INFÂNCIA DISTANTE

A Rui Guerra

Quando eu nasci na grande casa à beira-mar,
era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico.
Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul.
Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda
arrastando as redes pejadas.
Na ponte, os gritos dos negros dos botes
chamando as mamanas amolecidas de calor,
de trouxas à cabeça e garotos ranhosos às costas
soavam com um ar longínquo,
longínquo e suspenso na neblina do silêncio.
E nos degraus escaldantes,
mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas.

Quando eu nasci...
- Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me)
e o sol brilhava sobre o mar.
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei – nem sei porquê.
Ah, mas pela vida fora,
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta.
E o Sol nunca mais brilhou como nos dias primeiros
da minha existência,
embora o cenário brilhante e marítimo da minha infância,
constantemente calmo como um pântano,
tenha sido quem guiou meus passos adolescentes,
- meu estigma também.
Mais, mais ainda: meus heterogéneos companheiros
de infância.

Meus companheiros de pescarias
por debaixo da ponte,
com anzol de alfinete e linha de guita,
meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças,
companheiros de brincadeiras e correrias
pelos matos e praias da Catembe
unidos todos na maravilhosa descoberta de um ninho de tutas,
na construção de uma armadilha com nembo,
na caça aos gala-galas e beija-flores,
nas perseguições aos xitambelas sob um sol quente de Verão...
- Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada,
solta e feliz:
meninos negros e mulatos, brancos e indianos,
filhos da mainata, do padeiro,
do negro do bote, do carpinteiro,
vindos da miséria do Guachene
ou das casas de madeira dos pescadores,
Meninos mimados do posto,
meninos frescalhotes dos guardas-fiscais da Esquadrilha
- irmanados todos na aventura sempre nova
dos assaltos aos cajueiros das machambas,
no segredo das maçalas mais doces,
companheiros na inquieta sensação do mistério da “Ilha dos navios perdidos”
- onde nenhum brado fica sem eco.

Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhada
e boquiaberta de “Karingana wa karingana”
das histórias da cocuana do Maputo,
em crepúsculos negros e terríveis de tempestades
(o vento uivando no telhado de zinco,
o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda
e casuarinas, gemendo, gemendo,
oh inconsolavelmente gemendo,
acordando medos estranhos, inexplicáveis
das nossas almas cheias de xituculumucumbas desdentadas
e reis Massingas virados jibóias...)
Ah, meus companheiros me semearam esta insatisfação
dia a dia mais insatisfeita.

Eles me encheram a infância do sol que brilhou
no dia em que nasci.
Com a sua camaradagem luminosa, impensada,
sua alegria radiante,
seu entusiasmo explosivo diante
de qualquer papagaio de papel feito asa
no céu de um azul tecnicolor,
sua lealdade sem código, sempre pronta,
- eles encheram minha infância arrapazada
de felicidade e aventuras insquecíveis.

Se hoje o sol não brilha como do dia
em que nasci, na grande casa,
à beira do Índico,
não me deixo adormecer na escuridão.
Meus companheiros me são seguros guias
na minha rota através da vida.
Eles me provaram que “fraternidade” não é mera palavra bonita
escrita a negro no dicionário da estante:
ensinaram-me que “fraternidade” é um sentimento belo, e possível,
mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante
são tão diferentes.

Por isso eu CREIO que um dia
o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.

E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noite de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.

Um dia,
o sol iluminará a vida.
E será como uma nova infância raiando para todos.


(29/4/50)


[18]

quarta-feira, agosto 06, 2003

Rui Knopfli

DANA

Pelo trajecto sangrento das acácias,
da Mafalala às areias da Polana,
ou à maré morta da Catembe;
do Ho Ling à Casa Elefante,
da Casa Viegas ao Prédio Pott;
da opulenta sombra do cajueiro
à nobre majestade do eucalipto,

ainda resiste, na memória, uma cidade.
Por tardes de longa canícula,
sentada em seu regaço, a menina
dos cabelos cor de cobre regista-lhe,
com paciente labor, na brancura
do A3, a minúcia do perfil
que esbatido aos poucos, lentamente,

no deserto da memória vai morrendo.
Dele, em tempo, só restará o sal
teimoso que, a algum verso,
há-de emprestar o travo amargo
e o que, no rigor afectuoso dos seu traço,
da insanável ferida oculta,
é, obstinadamente, a visível cicatriz.


[17]

sábado, julho 26, 2003

Rui Knopfli

PROPOSIÇÃO

Falo de outro país singular,
do perfume aloirado
e desse sabor a pão matinal.

Falo, na distância,
de distâncias quietas
recortadas no zumbido oloroso
de casuarinas azuis.

Falo de paisagens tenras
e sombrias, simétricas,
como parques e losangos.

Trago notícias de outro clima
pairando em luz e pólen,
em suaves ardências de especiaria.

Falo de outras vozes estranhas,
de murmúrios e ruídos indiscerníveis,
dos pequenos ardis do silêncio.

Falo de corpos ágeis
e elegantes como gráficos
que se armam sem impaciência.

Falo de um céu onde estrelas
serenas navegam presságios
e do refúgio em uma outra
dimensão inusitada.

Falo da beleza das coisas
simples e elementares:
a água, o pão e o vinho.

Iludindo o espanto de viver
falo de estar vivo
e desse outro inventado país,

singularmente habitado, fora
da possibilidade de habitação.


[16]

domingo, julho 20, 2003

Rui Knopfli

NA MORTE DE REINALDO FERREIRA

Recusando a simetria académica
dum frio céu azul,
desce por si à desarmonia incandescente
dos infernos,
mergulhando até às ilhargas
no lodo carnal das paixões
que arrastou em vida.
Desce puro,
desce sereno,
na electricidade estática do olhar,
no amarelo dos cabelos em desalinho,
- uma enorme flor lilás
abrindo-lhe o fundo, magro peito.
Desce,
o menestrel de tontas melodias,
aos panoramas de uma infância
adulta.
O que na vida repartiu seu poema
por alados guardanapos de papel,
o criador de sonhos logo perdidos
na berma dos caminhos,
o mago que pressentia o segredo
da beleza perene,
recusa
a estática arquitectura dos parténones celestes
e desce,
simples,
sangrando,
sereno,
à angústia vulcânica dos infernos torturados,
onde
se mira como num espelho.


[15]
Sebastião Alba

REINALDO FERREIRA

Antes de mim, já outros o fizeram.
Dominadores de mundos circunscritos,
só se submetem aos que consideram
ser do domínio fulvo dos seus mitos.

Se vivem, é para o desnudamento
da íntima direcção que em si arrua
os gelos vindos de um cabo do alento
duma promessa a uma verdade sua.

Antes de mim, já outros o fizeram.
Com o cinzeiro cheio, amanheceram
ante a escarpa do olhar dentro de si.

Na mesa do café, tardando à mesa,
à curva do seu fardo de beleza,
como à do meu destino, obedeci.


[14]

Bibliografia essencial: Sebastião Alba, A Noite Dividida, Assírio & Alvim
Rui Knopfli

O POVO DA CHINA VISTO DO ALTO-MAÉ

Eh pá, a gente pensa na China,
nos compridos campos de arroz
e nos milhões de pessoas
vivendo lá na China.
É engraçado a gente aqui no Alto-Maé
que conhece o Kong, magrinho, da hortaliça
com aquela voz engraçada (Stá plonto patlão),
é engraçado como a gente se engana
com a China, aquele povo imenso
de Kongs amarelinhos e fala doce
que construiu a Grande Muralha
e que constrói a vida
e que, se tem tempo, se ri de nós,
da nossa pele descolorida,
dos nossos olhos redondos
e dos erres engraçados com que falamos.


[13]

segunda-feira, julho 14, 2003

José Craveirinha

PRIMAVERA

Estamos sentados.
E nefelibatas bebemos coca-cola
nas públicas cadeiras da praça.

E
sobre as envenenadas acácias
andorinhas geometrizam o azul do céu
e despercebidos passarinhos africanos
cantam nos verdes braços vegetais
de um parque da cidade moçambicana
onde jovens discutem as pernas de Brigitte Bardot
e abúlicas mãos tamborilam
no tampo da mesa fúteis dedos.

Mas um grupo de estivadores
vem do cais vestindo
sarapilheiras
e passa a três metros e meio
das cómodas cadeiras da praça
enquanto
cocacolizados
odes cantam nos ramos os bilo-bilana
e na surdina das tímidas meias-palavras
e subentendidos silêncios
ansiosos todos esperamos
indolentes as flores
da nossa comum Primavera.


[12]

quinta-feira, julho 03, 2003

José Craveirinha

ESPERANÇA

No canhoeiro
um galagala hesita
a cabeça azul.

Nos roxos
sótãos do crepúsculo
a aranha vai fiando
sua capulana de teia.

E nós?
Ah, nós esperamos
na euforia das costas suadas
que o sal do vexame acumulado
deflagre.


[11]
José Craveirinha

AFORISMO

O preconceito da ave
não é o tamanho das suas asas
nem o ramo em que poisou

Mas a beleza do seu canto
a largueza do seu voo...
e o tiro que a matou


[10]

Bibliografia essencial: José Craveirinha, Karingana ua Karingana, Edições 70

segunda-feira, junho 30, 2003

Rui Knopfli

ILHA DOURADA

A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras.
Tudo o mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio.
As gentes calam na voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade.
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.


[9]

quinta-feira, junho 26, 2003

Sebastião Alba

CIDADE BAIXA

Nas manhãs em que o mar se recusa
mesmo do último andar do edifício
e o aroma do café
sai de chávenas conjugais nas outras flats
confidencio-me:
Passa à escolha doutro dia
este é como uma sombra
de pé, na cidade
e a cidade é o mundo.
Peço então ajuda
aos amigos mais desencontrados:
Socorro, Eugénio! Socorro, Fernando!
Carlos (Drummond), socorro!
E o meu grito é um cicio fixo
no pesadelo em que nada transcorre.
Mas os seus rostos
rodeiam-me a cabeceira
e eu aprendo neles devagarinho
o sorriso que deixa
a vida irrecuperável.


[8]

Bibliografia essencial: Sebastião Alba, O Ritmo do Presságio, Edições 70

quarta-feira, junho 18, 2003

Rui de Noronha

À TARDE

Não sei o que há de indefinível, vago,
Na morna luz da tarde,
Que nos envolve de um etéreo afago
E como que nos arde.

De nós então parece que se evola
Um pouco de ansiedade
Que tímido cantando acende e rola
Em busca da verdade...


[7]

segunda-feira, junho 09, 2003

José Craveirinha

POEMA de JOSÉ CRAVEIRINHA NUM DIA EM QUE ESTAVA TODO DE NEGRO

Para Hitler - um Craveirinha judeu dedica


Olhem José Craveirinha que vai
vestido de negro passando
com longas pestanas descidas sobre os trágicos mundos
dos nostálgicos olhos profundos.

Olhem José Craveirinha que leva o autêntico cerne
não de platonismo de lagoa de reflexos de platina
não de um canto de cigarra farta no ramo de uma acácia urbana
não de uns flectidos braços de mulher na lânguida madrugada
não de uma semente estéril num chão de pedras
não de um silvo de fábrica na manhã do bairro
não de nada disso
nas do signo romântico das aves que cantam
na fatal paisagem de um continente
e nos poemas subversivos que o poeta não inventou.

Olhem José Craveirinha que vai
vestido de negro passando
no luto calmo de si mesmo.

Leva amor no brilho mágico dos olhos negros
amor de seus filhos e seus irmãos
de sua esposa e da mulher amada
e de tanto quererem levá-lo
leva África nos lábios duros.
Oh, leva África nos lábios duros
de tanto quererem levá-lo.

Olhem José Craveirinha que vai
vestido da sina geométrica das quatro paredes
(Quantas noites podes ficar de pé, José Craveirinha?)
lisas e direitas como um féretro de cimento
onde o querem desumanizar.

Negros são os seus olhos
(quantas noites podem ficar encandeados os teus olhos, José Craveirinha?)
dois carvões de presságios
da dor que vier fecunda a acontecer.

Ninguém chore ainda
ninguém lhe mande coroas de rosas
ninguém lhe dedique elegias
lápidas gravadas
e um dia músicas de "parabellum".
E ninguém tenha saudades enquanto não morrer
da morte esperada que lhes derem.
(Oh, quantas horas podes ficar com essas alianças nos metacarpos apertados, José Craveirinha?)

Leva nos olhos escuros a imagem secreta
das mulheres que mais amou
e na polpa dos dedos José Craveirinha leva os bicos
túmidos dos seios que beijou.
Magro e subversivo
Oh, José Craveirinha que vai
na nuvem de fogo dos pensamentos poéticos
(ah, o perigo dos pensamentos poéticos de José Craveirinha)
a trinta e cinco metros vigiado
por um atento cidadão bem remunerado.

Olhem José João Craveirinha num jipe
olhem José João Craveirinha acompanhado
olhem José João Craveirinha incomunicável
olhem José João Craveirinha preso.
E a notícia correu, célere na cidade construída na margem do mar
correu sobre os prédios e as copas dos cajueiros
correu de canto a canto
correu de boca em boca
correu nas iras do vento sobre a fronde dos coqueiros
correu de lés a lés como um rio sem parar

Ah, quantas morenas teve José Craveirinha
ah, quantas loiras amou José Craveirinha

E nos versos que escreveu
quantas mulheres
árvores e pássaros austrais
homens e crianças
ventos e rios e céus cheios de sinais
José Craveirinha cantou?

Olhem José Craveirinha que vai
no fatalismo atávico dos tambores rongas
passando vestido de negro
no luto de si mesmo.
Envolvido no feitiço imutável do seu destino
Olhem José Craveirinha
Olhem José Craveirinha que vai
preencher a geometria das paredes
carinhosas na bárbara nudez de pedra.

Olhem José Craveirinha
Olhem José Craveirinha passando
Olhem José Craveirinha que vai.


[6]

Poema publicado na Revista Português em Cordel nº 5, Junho de 1995, e "repescado" do site MADERAZINCO.

segunda-feira, junho 02, 2003

Fonseca Amaral.

L'APRÉS-MIDI D'UN GALA-GALA

Aí vai, em espiral,
pela mafurreira acima.
De capuz azul celeste,
estreitos lombos de cinza,
seu ventre quase de nácar
arrima-se às moças. Moscas,
quero eu dizer, na verdade.

Não se importa mesmo nada
com este odor machambeiro
a massala, milho velho,
capim seco e gasolina.
Só com a árvore conta
- mais um pedaço de terra,
para as pequenas surtidas.

Mesmo pequenas surtidas?
Também tem disso, também.
Coisas da vida terrena
de um bicho tão colorido,
solteiríssimo, tristonho...

Gala-gala, gala-gala,
diz que sim, que sim, que sim,
gala-gala!

"Conversa de jaca mole",
coaxam muchachos duros.
"Temos um réptil rampante,
heroicamente falemos.
Em ramada, em campo verde,
é dragão, raio, uma espada.
Sua justa guerra às moscas,
monstros de sete mil olhos,
merece um outro poema,
muito, muito sublimado!"

Gala-gala, gala-gala,
diz que não, que não, que não,
gala-gala!
Mesmo do seio do mato,
vem Mufana, a assobiar.
Topa logo o gala-gala.
Aventa rija pedrada,
e lá se vão para as malvas
o lagarto e o poema.


[5]

Bibliografia essencial: No Reino de Caliban - Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa, Volume III, Organização de Manuel Ferreira, Plátano (2ª Edição, 1997)

sexta-feira, maio 30, 2003

Noémia de Sousa

POEMA PARA RUI DE NORONHA
- No aniversário da sua morte

Nas matas selvagens da nossa terra natal,
os trilhos abertos a golpe de catana
tomaram uma direcção emocionantemente nova,
única e imutável.
Caminho com picos, ah sim, com espinhos,
mas caminho para nossos pés lanhados,
levando-nos para lá, Poeta...
Ante os novos horizontes abertos em dádiva,
nossas almas passivas aprendem a querer
com força, com raiva,
e se erguem, guerreiras, para a dura luta
e as bocas são uma linha forte e cerrada
no seu não decisivo como sentinela alerta.

Rui de Noronha,
nesta nova África de certezas e forças restauradas,
nos meio dos "paixões" e das bebedeiras do Natal,
vens-me tu, torturado e solitário,
ainda projectado para os fundos abismos do teu eu,
mergulhado em verdes precipícios de tédio
e insatisfação...
Vens-me sangrando de teus amores, Poeta,
tens amores inumanos
com desesperos suicídas e orgulhos brâmanes
te tomando toda a vida de homem.

Mas se tu me vens, Poeta,
desarmado e trágico,
eu te recebo fraternalmente
na capulana quente da minha compreensão
e te embalo com a música da mais doce canção
ouvida da minha cocuana negra...
E tu dormes, Poeta,
dorme teu sono tão desejado,
repousa em fim dessas fictícias tragédias só tuas,
e não atentes na canção...
Deixa que a sua carícia te sare as feridas,
mas não atentes nelas, não!
Que te pode despertar o xipócué do remorso
pois traz em si os feitiços mais poderosos
dos ngomas de Maputo
donde veio minha avó negra.
E talvez te pergunte, docemente:
ah, que fizeste de mim, Poeta,
cego e surdo e insensível,
que fizeste de Áfica, Poeta?
- Que passaste e não a viste?
- Que se ergueu e não a sentiste?
- Que gritou e não a ouviste?
E os remorsos te seriam tão dolorosos
como matacanhas te invadindo o corpo todo, Poeta!

Ai dorme, dorme, Rui de Noronha,
meu irmão,
continua dormindo aprisionado
na palhota maticada do teu eu.
Não atentes na canção - é tarde...

Mas o archote, murcho e fraco,
que as tuas mãos diáfanas mal logravam suster,
deixa que nós o levemos!
Embebê-lo-emos na resina das novas ânsias,
espevitá-lo-emos nas nossas fogueiras acesas,
manter-lhe-emos a vida chama
com lume das nossas esperanças sempre renovadas!

E depois, ah depois,
erguidos ao alto da Vida como um estandarte
por nossas brônzeas, fortes mãos
que a sua chama sanguínea de fulgor inextinguível
nos seja guia e inspiração
esporeando a revolta nascida nas veias entumecidas.

Como um cometa
atravessando a noite de nossos peitos esmagados.

25/12/49


[4]

Bibliografia essencial: Noémia de Sousa, Sangue Negro, Associação de Escritores Moçambicanos, Maputo, 2001

quinta-feira, maio 29, 2003

Rui de Noronha

SURGE ET AMBULA

Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo avança, o tempo vai seguindo...
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E no outro tu dormes o teu sono infindo...

A selava faz de ti sinistro eremitério,
onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo.
A terra e a escuridão têm aqui o seu império
E tu, ao tempo alheia, ó África, dormindo...

Desperta. á no alto adejam negros corvos
Ansiosos de cair e beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...

Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno...
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz – "Africa, surge et ambula"


[3]

Bibliografia essencial: Rui de Noronha, Sonetos, Tip. Minerva Central, Lourenço Marques (exemplar fotocopiado)

quarta-feira, maio 28, 2003

Rui Knopfli

NATURALIDADE

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem a raíz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não, é certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.


[2]

terça-feira, maio 27, 2003

Apesar da epígrafe de Natália Correia, este blog destina-se à partilha da literatura em geral, mas sobretudo da poesia, de Moçambique, e constrói-se sob a égide dos poemas de Rui Knopfli. Que, muito naturalmente, o inaugura.


ENTÃO, RUI?

Sobes o barranco, corpo magrote
e alguns empenos, rosto miúdo
nariz agressivo, o olho muito agudo,
ríspido qual ave de presa.
Tu capital a teus pés,
sem que o saiba, longilínea,
alinhada, de carros pequenos
e brilhantes entre acácias de miniatura.
Coças o peito na zona do esterno
num jeito muito teu. E olhas.
Teu olhar tem a curvatura
terna e feroz de uma grande-angular.
Esse perfil distante de cimento
e argamassa é toda uma geometria
decantada e gostosa molhando os quadris
deleitados no charco doce da baía.
Diacho, que perfil mais bonito, hem?
Então, Rui, que é isso,
não vais agora comover-te?


[1]

Bibliografia essencial: Rui Knopfli, Obra Poética, Colecção Escritores dos Países de Língua Portuguesa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003